Este novo livro do Miguel-Manso (“ribatejano no sentido Alberto Caeiro do termo”) pode ser muitas coisas: uma arte poética, um exorcismo da paisagem, “livro-paisagem com autor a escorregar – locus horrendus – nas tendências perigosas da autobibliografia”, livro de magia, uma “hermenáutica”, um desagravo de jovem poeta, rol de palavras de uso raro. De qualquer modo é um livro sério, com bom humor – “A ornitologia é uma ontologia que ri”.
Começar pelo princípio ou pelo fim? Tanto faz –
no princípio – primeira de “53 presenças” –, abre-se o alçapão, um buraco, uma ausência, um nada. Não interessa, “pões o braço lá dentro.” É simples: nada há a retirar, mas sim a preencher – pensas, mas pensas errado, o que acontece é que ficas com “um lugar a menos”, ou seja, aquilo que entra no nada torna-se presença, ela mesmo de natureza de ser alçapão, buraco… Confuso? Nem por isso, “Lógica e mística dar-te-ão a logística com que atravessarás os entraves todos” –
“Desaparecem fim, meio e começo, e da construção restará, sem penas, o empenho deambular de não edificar: Escreve-se o livro como quem cita um texto obsceno.” –
no fim (quase), mas também presente por todo o livro em diferentes formulações, a ontologia da poesia, sem anagramas, a busca, a impossibilidade mas também a crença: “Só um remoto dizer, ainda que pré-gutural, ressume no vento da potência. O tempo que demora percorrer a ideia de começo é já muito tarde. Enquanto na origem se prepara e atavia o mundo, já tudo resultou daí em não poder. Escrever é viver entre os mortos. Porque só entre os mortos poderás aproximar a mão do berço.” –
o que poderá haver de mais pasmoso num livro do que o prazer da deambulação entre coisas e os seus contrários? “Diagnóstico: sofres de Hermes labial”.
“Poesia em estado bravio há.” Mas o poema “terá de encontrar a voltagem exacta” para encontrar a pequena parcela que o redima do “corrupto agregado literário”. “O primeiro problema dos poetas começa por ser uma dificuldade de artesanato, de técnica, de oficina. E os cantos mais belos estão ainda à espera de ser cantados” – cita Walt Whitman (apenas com as iniciais WW). O poeta “Aquieta o coração para fluviar à bolina do dia”, acho que é o que ele faz melhor – e nós também –
resta “XIV” [“Retiradas”], a “Umbra et Cataracta”. “Lugar ameno” – uma fotografia (não identificada) de um homem velho, deitado numa cama, com os olhos vendados, repete-se por 7 vezes, cada uma delas com a legenda numa língua diferente. Antes, no fragmento 48: “Eloquente ablepsia [cegueira] olhadora em estado de vazio, a leitura progride sempre no sentido de deslembrar” –
este livro que pode ser muitas coisas, digamos, de poesia, é, diz o Miguel, um livro pop, que “não é sinónimo inflexível de regalo, logro e comércio”, “Bardos de medíocre obscuridade já temos barda.” Um “jovem autor” sobre quem se entoaram “excessivas loas aos resultado dos seus primeiros trabalhos”, deve passar “por isso inalterado”, recorrendo a sangrias, onde, para além da lanceta, “é habitual recorrer-se a sanguessugas. O autor deixa à mostra um pedaço de si que acumulou mais matéria e elas vêm alimentar-se”.
E fico-me por aqui, e peço-te, Miguel, “perdoa (…) a quem te tem, oh, fendido; e livra-te [me] do bem”.
(ah: o livro chama-se “Um lugar a menos” e é edição de autor, da série pessoal “Os carimbos de Gent”, Lisboa, 2012, encomendas para oscarimbosdegent@gmail.com).
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