Recordo com gosto um jantar no restaurante D. Luís, em Campolide, quando o Manuel e a Inês juntaram os escribas dos primeiros livros da sua novíssima editora Averno: o Rui Pires Cabral (Praças e Quintais), o Rui Caeiro (Olhar o Nada, Ver a Deus) e eu (A Realidade Inclinada). Isto foi em 2003.
Na Averno seguiram-se muitos mais livros e escribas.
Entretanto, eu deixei o bairro e o convívio com alguns amigos.
E a Inês publica agora o seu primeiro livro de poemas: Em Caso de Tempestade Este Jardim Será Encerrado (Tea For One, 2011).
Escrever sobre um livro – coisa que faço poucas vezes e apenas sobre autores com quem tenho afinidades de alguma natureza –, resulta de uma vontade que tem semelhanças com a que me leva a criar as minhas próprias coisas. São diálogos, declarações de gosto, cumplicidades (embora deva admitir que algumas possam não ter retorno). Não são críticas – muito menos este texto –, embora eu não tenha por princípio nada contra a crítica (os contextos e os modos como se exerce são outras questões, que não vêm agora a preito).
Na minha primeira leitura deste livro da Inês fiquei com a impressão (essa coisa boa que tantos desprezam em público e cultivam em privado) de ser uma jornada de vida em que a sua voz poética, serena e contida, pontua momentos de vida da mulher Inês, mas, igualmente, a da poeta Inês, coisa, aliás, que reciprocamente se contaminam, ora de forma pacífica, ora em justas dolorosas. Creio que todos os livros de poemas são isso e apenas isso, uma maneira singular de cada um se inventar, nunca a partir de um nada impossível, mas num jogo de intermináveis passagens entre estados, naturezas, visões, desejos.
Uma primeira obra nunca é a primeira, pois resulta de sucessivos livros primeiros que se escrevem noutras zonas do ser (e sem essa escrita, essa sim primeira, não haveria “primeiras obras”). Por “razões” que nem imagino, a “primeira obra”, aquela de que saboreia as palavras impressas – visualmente, pelo tacto, pelo cheiro, pela manipulação das suas folhas – poderá ser o primeiro e único livro da vida do poeta, por vislumbrar que nunca mais poderá vir a escrever outro – porque nesse primeiro se esgotou, ou porque é preciso que a vida aí termine (o poeta nada mais tem a dizer, aquilo que ele é está nesse último – embora aparentemente primeiro – Livro.) Se o poeta atinge aquilo que quis alcançar, possuir-se a si mesmo na obra que termina, para quê continuar? Se não se possui, deve, então, saber esperar.
Continuar – a escrever – é viver no futuro, com um presente indesejado, incompleto. Poucos poetas conseguiram parar. Continuam(os), diz-se, a escrever sempre o mesmo livro. Prova de incompletude, será. Nunca coincidindo com o Outro que sabemos ter em nós. Divididos. Separados.
Porque digo estas coisas quando dialogo com o livro da Inês? Não sei, mas devo aceitá-lo (e quero partilhá-lo), porque sei que o sinto e o escrevo pelo livro dela – e pela mescla insondável de outras coisas que momento a momento nos fazem, infelizmente (ou talvez não). Nem os poetas sabem bem como separar os ingredientes da vida. Pois seja.
A Inês é uma pessoa amável e gentil. Mas isso não a impede de saber como perscrutar os escaninhos da sua, da nossa, via dolorosa – e de os expor à luz, que a uns acicata desejos, a outros o júbilo do fim. A jornada neste Jardim da Inês começa, canonicamente, pela Rua da Infância. Nela, há uma “rua estreita” que lhe “parecia só acabar no mar / no mar.” Mas, “se olhar / mais demoradamente” já sentirá o “sol a queimar o futuro”. Cinco anos é uma boa de idade para aprender que as palavras nunca se hão-de separar de nós: “Quando ela me cravou um lápis / sob o olho esquerdo, pressenti que a escrita, / grafite fria à flor do sangue, / deixaria marcas para sempre.” – “ela” foi a Ágata, “cabelo em forma de pássaro – negro / asa de corvo.”
A vida deixa marcas na escrita. Nesta escrita, o desencantamento, uma melancolia, associada à noção de perda, vai ganhando corpo. A falha é muitas vezes encarada como um espinho que acirra a desistência, mas também pode levar a uma exposição serena da dor. Espera fria e rigorosa. A escrita da Inês não apela ao sobressalto existencial – se, “em caso de tempestade o “jardim” tiver de ser “encerrado”, creio que ela olhará uma vez mais a pena branca da “colomba ferita” entre a vegetação e caminhará, serena e firmemente para a saída mais próxima.
Um “morto fica mais só”, mas “Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.” – “pago para fugir / à morte, escolhendo trajectos que me façam doer / todos os músculos, excepto o do coração.” Num “dia / em forma de pássaro morto”, a uma “indiferença cansada” prefere “a do outro pássaro que, lá muito em cima / (…) refaz a traços negros / a vida. É por esses instantes / de voo que aceito continuar a perder.”
“No fundo, é isto: espera-se.” / Escrevemos incuravelmente / a história dessa espera, mas / nunca se chega ao fim da rua, / mais escura do passado, / nem se despe por completo o luto, / sempre outros os mortos, sempre igual a si / a morte. A espera, // essa continua.”
O tipo singular de desencanto que atravessa a escrita da Inês pode ter este paradigma (de “Cemitério dos Prazeres”): “E o amor / [é] um casaco que nos pousam / sobre os ombros, como se isso bastasse / para reanimar o coração / quando tocamos às portas / e ninguém responde.” Mas desencanto não significa necessariamente desistência ou prostração: “Sobreviveremos à demasiada solidão, / mesmo que nenhuma outra porta / se venha a abrir para nós.” (do mesmo poema).
O antepenúltimo poema – dedicado a António Barahona – intitula-se “La Colomba Ferita”. Se ainda se puder usar o adjectivo “belo”, direi que sim, que é o poema mais belo do livro, e também o mais poderoso na sua luz. Na minha leitura, impressionista, direi, então, que é o poema-emblema do livro. É um daqueles poemas de que se pode dizer que “inventa na língua uma nova língua”.
Creio que é melhor transcrevê-lo integralmente:
Quando me cansar de voar ou
a ferida estiver finalmente visível,
promete-me que a faca
será afiada e silenciosa.
Que eu não a veja chegar,
como se não tivesse passado
uma vida a pressenti-la nas dobras
do lençol, mortalha de tantas noites.
E antes, dá-me de beber
entre as mãos, conta-me
de céus azuis, sem garras
e sem abismos. Espera que
o meu coração de novo pequenino
se aninhe no calor das tuas veias
e se torne apenas a memória de
um sobressalto contra a tua pele.
Por este livro, por este poema, regresso a Campolide.
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