Posts tagged ‘Filosofia’

01/03/2012

A GUERRA

por cam

«É fácil, e vulgar, que se induza no homem normal o estado de homicídio: basta mandá-lo para a guerra. O bêbado procede como um louco, e o soldado procede como um assassino. (…) Porque mata o soldado? Por uma imposição de um impulso externo que lhe oblitera por completo todas as suas noções normais de respeito pela vida e pela lei; esse impulso externo pode ser a Pátria, o dever, ou a simples submissão a uma convenção, mas o facto é que é como o álcool que converteu o outro em louco, uma coisa vinda de fora. A guerra é um estado de loucura colectiva, mas, nos seus resultados sobre o indivíduo, difere da bebedeira: a bebedeira dissolve-o, a guerra torna-o anormalmente lúcido, por uma abolição das inibições morais. O soldado é um possesso: funciona nele, e através dele, uma personalidade diferente, sem lei nem moral. O soldado é um possesso ou um intoxicado com uma daquelas drogas que dão uma clareza factícia ao espírito, uma lucidez que não deve haver perante a profusão da realidade. (…) Um respeito emotivo pela vida, eis o que evita que se mate. Tem-no o budismo; tê-lo-ia o cristão, se efectivamente o fosse. (…) Quem não é capaz de matar um homem também não é capaz de matar um frango. E, conversamente, quem é capaz de matar um frango é capaz de matar um homem; o caso é fornecerem-lhe as circunstâncias externas que lhe tornem frangos os outros homens, ou determinado homem – isto é, as circunstâncias externas em que se obnubile, não a noção da existência (essa está obnubilada em quem pode matar), mas a noção da identidade de outra vida humana como a própria (que é o que está obnubilado em quem efectivamente mata).»

[Fernando Pessoa, Quaresma, Decifrador, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, edição de Ana Maria Freitas: pp. 93-98]

13/01/2012

PÓS-DEMOCRACIA

por cam

Na imprensa generalista, António Guerreiro (AG), no jornal Expresso (suplemento Atual), é uma das vozes mais persistentes na actualização de um pensamento sobre o mundo em que vivemos, quer na reflexão sobre a literatura, quer no âmbito de largo espectro do pensamento filosófico. Recentemente, abordou a actual crise europeia com o conceito de pós-democracia (O Rapto da Europa (versão em 3D), edição de 19 de Novembro de 2011, pp.34-36).

Falar de pós-democracia, ou estado pós-democrático na Europa, não é o mesmo que défice democrático. A ideia, outra, “significa a entrada num outro modelo que ainda não sabemos designar senão como inflexão, historicamente determinada, da democracia.” AG aborda esta ideia com o concurso de dois livros recentemente publicados: de Jürgen Habermas, Zur Verfassung Europas, e de Hans Magnus Enzensberger, Le doux monstre de Bruxelles ou l’Europe sous tutelle, na versão francesa. Habermas, segundo AG, “reflecte sobre uma constituição europeia que possa consagrar uma forma particular de «democracia transnacional» sem sacrificar a autonomia democrática dos povos e nações europeias.” Há em Habermas uma “denúncia” de “um caminho pós-democrático” “seguido por Angela Merkel e Nicolas Sarkozi.”

Por seu lado, Enzensberger ataca com “fúria crítica e muita verve cómica a obstinação de Bruxelas (…) em elaborar regulamentos e directivas, em controlar tudo e «colocar tudo sob tutela», impondo um sem número de regras que determinam a vida quotidiana dos cidadãos europeus.” Enzensberger denuncia a elite, supostamente esclarecida, que nos diz o que é certo ou errado, nos diz o que é melhor para todos nós. «A simples ideia de um referendo desencadeia imediatamente o pânico na eurocracia.» «A tríade Parlamento-Conselho-Comissão produz um buraco negro onde desaparece o que nós entendíamos por democracia.». A U.E., deste ponto de vista, representa uma tentativa de extermínio da “velha invenção europeia que é a democracia.” Aquilo que a Europa está actualmente a promover (“modelo técnico de governamentabilidade”) “abole a política e a ideia de representação e mediação em que esta se baseia.” A Europa, assim, “está a passar por derivas que significam pura e simplesmente a morte do modelo democrático ocidental.” A referência pode deixar de ser a cidade (a polis), mas sim a empresa – a pós-democracia.

Entretidos a discutir a baixa política no atropelo do quotidiano, despimo-nos da nossa capacidade de pensar, categorizada já como luxo ou coisa supérflua. Resta saber se isso acontece por ser uma consequência inevitável da abolição simbólica da Cidade ou se, por razões complexas, foi essa desistência que facilitou o caminho à invasão dos “bárbaros” de fato cinzento.

12/01/2012

BOTEM OS HOLOFOTES SOBRE O GAJO

por cam

Já tentei chegar à coisa de várias maneiras, a menos má é esta: Botem os holofotes todos sobre o gajo que dá pelo nome de António Cabrita e está no Alto Maé, Maputo, Moçambique, mais a Teresa e as suas três meninas! Um gajo agarrado ao tutano da terra e a viver noutro espaço-tempo. E faz disso escritura como pouca se faz no mundo que eu conheço. Pronto, está dito.

Ando às voltas com o Respiro dele (edição Língua Morta, Lisboa, Novembro de 2011 – não saiu em nenhum Top Ten, estejam descansados!). São trinta páginas de texto que pesam como um milhão de anjos (talvez caídos).

Num repente, pode ser assim: o Cabrita convocou Plotino, Koestler, Bosquet, Octavio Paz, Ken Wilber e Shayegan (exemplos maiores) para servirem de pilares e traves mestras para uma casa que ele próprio constrói. Até aqui, tudo bem. Ora, acontece que a casa que o Cabrita quer construir com eles é uma casa que desconcertaria qualquer arquitecto, dos idos e dos vindouros, parece-me, pois tem como principal traço distintivo o de ser uma casa e o seus desdobramentos sem fim. As cobertas não são o que parecem, nem o chão, e molda-se aos pensamentos de cada habitante ou visitante. Mais ou menos, que as palavras parecem estar a ser contaminadas pelas flutuantes terras moçambicanas.

Cabrita evoca o “clamor das contradições” (Plotino), os hólons (Koestler), o “terceiro incluído” (Nicolescu, Lupasco)… para dar umas valentes voltas ao real e à realidade, à referencialidade, ao uso da metáfora e da metonímia, ou não fosse o poeta, na iluminação de Jean Carteret, “o homem mais esburacado do mundo”.

(quando acabei a primeira leitura, só me apeteceu copiar todo o livro, como fez segundo Borges, o Pierre Menard, que “tinha a admirável ambição de vir a produzir umas páginas que coincidissem, palavra por palavra, linha por linha, com as de Miguel de Cervantes” no seu Quixote. Pois.)

Sobre a metáfora, nas palavras do poeta libanês Adonis: «Quando a metáfora encosta à ordem do dizer é porque está degradada e estampa unicamente uma réplica rançosa de um território que a retórica já mapeou – o que hoje, na realidade, acontece à maior parte da escrita e escolas, sem excepção.»

Os hólons, “cabeça de Janus: podem ser vistos como um todo em si mesmo e, simultaneamente, como uma parte do todo maior”, marcam o caminho do Cabrita na primeira parte do ensaio, mas ele faz questão de dizer que não há “hologarquias”, pois há uma diluição de categorias e não um esforço da legitimidade das mesmas – um não à autoridade. A água que sob fervura sobe no alguidar é o território da imanência, seguida de extraterritorialização, e dessa dobra nasce um novo plano imanente e assim sucessivamente. Por outro, lado, sem contradizer isto, mas seguindo-se-lhe, socorre-se ele de Bosquet : «avant l’arbre, il y a le besoin de dire arbre. Donc, la poésie va vers un renversement des hiérarchies.» A escrita vem de fora (Christian Bobin), o aqui e agora que tem no Efeito de Moebius (Pierre Levy) um recurso de uma consciência, corresponderá à Dobra de Fora de Deleuze.

E (simultaneamente), a “intuição de Paracelso: “em cada nível é a mente quem faz ver os olhos” – “e viva a reversão do Efeito de Moebius”.

Na segunda parte, Cabrita ataca a linguagem. Talvez as palavras que pede emprestadas a Octavio Paz digam o essencial: as palavras são elas o “o referente e são tão reais como as árvores, as casas, os aviões as paixões”. Isto porque o Cabrita se deita a falar de “linhagens de poetas”, uma, daqueles que se servem da linguagem como instrumento auxiliar; outra, daqueles para quem a “linguagem é em si mesma um problema, um conflito já existente, uma dobra” – e depois traz à liça o Herberto Helder. De um gag do Bucha & Estica, salta o cinéfilo Cabrita da “terceira mão” do gag para uma “terceira palavra”, a Graça de ser capaz de “aceitar o estranho como parte de nós. A “terceira palavra” é o poeta aceitar uma palavra que não lhe pertence – a instauração do sagrado.

Entro na terceira parte, em que o Cabrita diz que no mundo às camadas – os hólons – quando “ocorre uma passagem de uma para outra camada ocorre uma conversão semiótica”. No interior da linguagem, “a lógica deixa de operar segundo um esquema linear, gramatical, que se duplica na representação do espaço-tempo sucessivo, para actuar segundo intersecções, vizinhanças, constelações, fractalidades.” E diz ele julgar que se localiza “aqui a origem das disparidades que retalham o tecido da poesia contemporânea”

(isto está na página 26, não me apetece fazer ecoar aqui os nomes que povoam o texto).

Interessa-me, isso sim, abrir o peito a balas como estas: o poeta “habita” o “susto da linguagem”, “é uma coisa que se «sofre», e que não se pede ou de que se faça posse”. Esta parte termina com uma citação de Llansol, de Um Falcão no Punho, que talvez pudesse estar como epígrafe geral do ensaio: “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros.”

(agora devir ficar um ano a reler os livros da Llansol, mas nã’ posso)

Da quarta e última parte quero reter a reafirmação do duplo contra o uno, das simultaneidades contra o plano rasante, dos paralelismos simultâneos contra as univocidades, e assim (percebam que estes “contra” não são bem contra seja oque for…).

Outros “contras”: contra “o patchwork que é a regra que enganosamente nivela o mar das consciências”; contra o “sabor único”.

(agora devir ir trocar as partes todas e reescrever o texto, mas nã’ tenho forças)

Em 2007, a propósito da celebração de mais um Dia Mundial da Poesia, editei uma plaquette com um texto do Cabrita intitulado Que histórias conta o ouriço à baleia? – Travessias no imaginário. Começa assim: “Na Índia, Deus pode criar uma pedra que lhe seja impossível deslocar, e sonhar um sonho do qual não desperte. O que seria uma impossibilidade lógica para o pensamento ocidental. Na filosofia, chama-se a esta impossibilidade lógica uma aporia. Mas não existem aporias na literatura.”

Não sei quantas vezes mais voltarei a este livro do Cabrita, tenho de confessar que sofro de outras perturbações: agora, é com o Carlo Michelstaedter – La Persuasión y la Retórica, edição espanhola – e com o Quaresma, Decifrador, do Pessoa (mas o monte na realidade é maior e a confissão passaria a ser vergonhosa).

Ao fim da terceira leitura, impuseram-se-me os sobressaltos que se seguem:

1 . Um texto também serve para aprender

2 . Um texto também serve para cair num poço

3 . Um texto não serve para saber se o poço tem fundo

4 . Um texto pode ser um poço

5 . Um texto pode (deve?) ser Dois

6 . Um texto vai a meio

7 . Um texto flui como vida

8 . Um texto não existe porque é sempre a vontade de outro texto

9 . Um texto não se possui

10 . Um texto é ponte e travessia.

Respiro, ensaio de António Cabrita, nas edições Língua Morta, Novembro de 2011
30/12/2011

O PÊNDULO DE MICHELSTAEDTER

por cam

Finalmente vou ler Carlo Michelstaedter, o jovem filósofo italiano autor de A Persuasão e a Retórica, livro que me chegou hoje de Espanha. Michelstaedter era para mim um desconhecido até ler, há muitos anos, o texto de Eduardo Prado Coelho “O ensaio em geral”, inserto n’O Cálculo das Sombras (ASA, 1997). Prado Coelho refere-se a ele quando aborda o “lugar do ensaio num mundo que surge como que alienado pelo predomínio de uma cultura estética em que a exigência de verdade e o peso das motivações profundas se foram progressivamente dissolvendo.” (p. 30).

Para o autor de A Mecânica dos Fluídos e O Universo da Crítica, Michelstaedter descreveu como ninguém “com tanta veemência (por palavras e actos trágicos) esta situação.” (p. 31). Sigo EPC (pp. 31-32): Carlo Michelstaedter, nasceu em 1887 em Gorizia e estudou em Florença. Suicidou-se a 16 de Outubro de 1910, no dia seguinte àquele em que redigiu os apêndices críticos da sua tese intitulada La persuasione e la retórica. O seu trabalho abre com uma imagem que tem vindo a tornar-se famosa: o pêndulo. Para Michelstaedter, um pêndulo que esteja suspenso de um gancho move-se por um desejo intenso de tocar o ponto mais baixo: que seria aquele em que viria a coincidir consigo mesmo, definitiva e solarmente persuadido da sua própria verdade. É esta a «sua fome de mais baixo». Mas entregue a si mesmo o pêndulo oscila, balança, agita-se numa interminável circularidade de movimentos, em que cada ponto que ele atinge é um ponto em que falha o ponto mais baixo que pretendia atingir. Deste modo, «sempre o domina uma igual fome do mais baixo e infinita lhe resta para sempre a vontade de descer.» Mas se alguma vez pudesse atingir esse ponto (o ponto em que, persuadido de uma verdade única, deixaria de estar submetido à oscilação do processo de persuasão, isto é, ao movimento incessante da retórica), ele deixaria de ser o que é: um peso – «quando mais nada lhe faltasse – mas fosse finito, perfeito: se se possuísse a si próprio, ele teria deixado de existir». A verdade absoluta como limite inevitável da persuasão é não apenas a morte da linguagem (ou a morte de uma linguagem dominada pela retórica) como a morte da existência humana. Mas a sua vida enquanto vida é também insatisfação absoluta, vazio radical: «la sua vita é questa mancanza della sua vita». Donde, o pêndulo está condenado à oscilação (ou, se quiserem, à cultura estética dominada pelo oscilação retórica): «O peso é para si próprio impedimento de possuir a sua própria vida e não depende de mais ninguém senão de si na sua impossibilidade de se satisfazer. O peso não poderá nunca ser persuadido.» O seu destino é abandonar-se ao eterno jogo das aparências e das sombras, colorido pelas manchas vagabundas da pintura impressionista, fragilizado pela derivação psicológica, impulsionado pela orgia dionisíaca de raiz nietzschiana. (o Eduardo Prado Coelho morreu há quatro anos e sempre que leio um dos seus textos não quero aceitar que tenha morrido).

O livro que vou ler é uma edição de 2009 da sextopiso (Espanha/México), com apresentação de Miguel Morey e prólogo e notas de Sergio Campailla. Textos complementares de Claudio Magris, Massimo Cacciari e Paolo Magris.

19/12/2011

CABRITA

por cam

Louca entrevista feita por Marcelo Ariel ao meu amigo António Cabrita (não resisto a reproduzi-la, com a devida vénia para a Revista Pausa (Brasil), que pode ser acessada por aqui):

 

«Fale um pouco da sua trajectória como escritor e roteirista.

Tive a primeira ejaculação prematura aos 17 anos, quando editei um deprimente livrinho de poesia social. Numa colecção que, em 1977, representava o movimento beat em Portugal. Com muitos copos, fumos, boémia e o culto dos surrealistas e de Ginsberg e companhia, procurávamos contrariar o sufocante militantismo marxista do país, nessa altura. Aí conheci um poeta mais velho, o Levi Condinho, uma gema libertária, que me educou na música erudita e no jazz e, com uma generosidade rara, me pôs a ler filosofia e a grande poesia europeia. O Levi foi o verdadeiro saca-rolhas da ebriedade poética que me tomou. O segundo grande encontro da minha vida foi o Al Berto, que conheci aos 18 ou 19 anos. Era dez anos mais velho que eu, e parecia um músico dos Yes ou dos Led Zepellin. O Al Berto chegava da Bruxelas, onde vivia exilado e trocou os pincéis (era um excelente pintor mas destruiu quase toda a sua produção) pela escrita. E insensatamente propôs-se gastar o pecúlio de uma herança fazendo livros. Editou 8 livros, antes de se aperceber do beco em que se metera, um deles o meu segundo livro, um poema de 18 páginas num caudal rimbauldiano e numa associação tão livre como a do pára-quedista que se descobre em queda livre.

Depois entrei na Escola de Cinema, onde durante o primeiro ano apanhei bonés. Aí fui aluno do poeta João Miguel Fernandes Jorge, um dos grandes do século XX em Portugal, com quem privei uns anos, e do encenador Ricardo Pais com quem viria a colaborar em vários projectos. A dado momento repararam que me safava a escrever diálogos e comecei a ser usado para as aulas e a ser disputado pelos cineastas para “negro” dos filmes deles. Um deles, o cineasta e encenador de teatro Jorge Silva Melo, dirigia uma colecção de teatro na Imprensa Nacional e perguntou-me se não teria uma peça de teatro. Aquilo cheirou-me a dinheirito e disse imediatamente que sim. Depois tive de escrever a peça em poucos dias. Ao mesmo tempo, também para a Imprensa Nacional, fui convidado para lá colocar um livro de poesia, um livro mais dominado que o anterior. Nessa altura a Imprensa Nacional fazia 3000 exemplares e pagava os direitos de autor por inteiro à cabeça. Como tive a sorte de publicar dois livros quase ao mesmo tempo, casei logo e a embriaguez, as lecas e o casamento duraram um ano. E tenho a certeza de que o sucesso me fez muito mal.

Acabado o curso, participei de algumas rodagens de filmes, mas rapidamente me dei conta de que preferia a solidão, um queijito, vinhito e um livro de poesia, ao frenesim de andar aos molhos a tentar papar a nova assistente do guarda-roupa ou de não falhar a linha de coca à saída do plateau. E em 83 passei-me para os jornais e revistas – JL (Jornal de Letras), O Jornal, Elle, Expresso – onde escrevia crítica de filmes e livros. Rapidamente, fui de novo convidado para fazer roteiros para filmes e séries documentais. A dado momento fiz parceria em vários roteiros com a escritora Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2000; mantendo paralelamente a minha actividade de jornalista cultural.

Depois de escrever inúmeros filmes, e de ficar invariavelmente em curto-circuito quando via o resultado final, resolvi ensaiar a ficção e em 1995 publiquei o meu primeiro livro de contos, Cegueira de Rios. Só em 1997 voltei à poesia, depois de uma situação de falência técnica que me obrigou a concorrer a um Concurso Literário, o Prémio Cesário Verde, que ganhei barbaramente e me aliviou de dívidas. Este livro, Carta de Ventos e Naufrágios é o primeiro livro de poemas que agora coloco na minha tábua bibliográfica, que omite os anteriores.

No ano seguinte publiquei As Cinzas de Maria Callas, 2º livro de ficção, que foi considerado pelo ensaísta António Guerreiro como um dos dez melhores livros portugueses do ano. Em 2000 editei Arte Negra, uma antologia de poesia, e envolvi-me nas edições como sócio e director editorial. Tive duas editoras – Fim de Século e Íman Edições – com as quais produzi e editei acerca de setenta livros, tendo experimentado o aveludado gosto de empobrecer feliz.

Ao mesmo tempo, meti-me no teatro e tive três peças em cena em Lisboa, uma delas, Nada do Outro Mundo, com digressões pelo país.

Em 2005, zangado com o descalabro comercial da Ímã, (apesar do excelente dossier de imprensa conseguido, o nervo comercial – as distribuidoras – não acompanhava o passo), resolvi abandonar o jornalismo e mudar de vida, e ir para Moçambique, terra de origem da minha mulher. Aqui tenho escrito filmes e séries televisivas, dado aulas na universidade, e escrito, com método e gana.

E desde então publiquei seis livros em Portugal, de poesia e prosa, com destaque para o Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, contos, que teve uma excelente fortunata crítica, e de Não se Emenda a Chuva, de poesia. Há um mês publiquei uma novela policial, O Branco das Sombras Chinesas, escrita em parceria com o escritor João Paulo Cotrim, que acabou de ser destacado na última edição do Expresso, com 4 estrelas em cinco (suponho que o 5 irá para o Proust e o Lobo Antunes) e, nesta última semana, o ensaio poético Respiro. E mantenho um blogue há um ano, raposasasul.blogspot.com, onde só trato de literaturas.

Você vê algum entrelaçamento ou simbiose entre a imagem no poema e a imagem no filme?

O Pierre Reverdy já ensinou tudo o que havia a dizer sobre isso: «A imagem é uma criação do homem. Ela não pode nascer duma comparação mas duma aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais justas e afastadas forem as relações de duas realidades em aproximação tanto mais a imagem será forte – tanto maior realidade poética e poder emotivo conterá…»

Como se vê neste quadro de Chirico:

 

 Creio que para a poesia e o cinema isto continua a ser válido.

O que você pode dizer sobre a situação da cultura em Portugal, em Moçambique, e no mundo actual.

Nem no Xipamanine, o maior mercado informal de Maputo, encontraríamos lenha para tanta combustão. Bom, mas como na minha rua fica o quartel de bombeiros, tentemos. Acho que Portugal tem um painel de excelentes criadores neste momento – na literatura, no teatro e nas artes plásticas – mas que o quadro institucional é deprimente. Tenho curiosidade em saber como vai reagir o mundo do teatro aos cortes draconianos nos subsídios pois, historicamente, as crises geraram sempre movimentos relevantes no teatro, e espero que o estado de penúria incite ao aparecimento de uma nova geração que saiba esbofotear com qualidade. O movimento editorial está um caos e dominado por gente que não gosta de ler nem de livros, mas há muita gente a escrever e a qualidade média subiu. E os brasileiros tinham vantagem em perceber que o estereótipo do portuguesinho sisudo e muito sério não passa de um cliché, que há coisas muitas vivas a passarem-se na literatura portuguesa. O cinema está a ser desmantelado e a ser substituído por audiovisuais pouco estimulantes, i.é, iguais a todo o fastvídeo.

Em Moçambique o período é de hibernação na cultura, pois não é prioritário para os políticos. Mas há bolsas de teimosos que resistem e uma dúzia de escritores que não largam o osso e se obstinam. Emerge neste momento uma nova geração de qualidade na poesia, depois de 20 anos de marasmo que corresponderam ao igual período de tempo em que não chegou a Moçambique um livro. Literalmente. As artes-plásticas é a expressão mais forte, sendo, neste sector, uma das mais importantes de África.

Nomes absolutamente a reter, na literatura, e só falo dos vivos: João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane, Luís Carlos Patraquim e Tânia Tomé. São as minhas escolhas.

A Maldição de Ondina, o teu primeiro romance, é um livro onde o amor é maior que a política, parece-me. Você concorda com isso, e porquê? Faço esta pergunta porque também eu sou vítima de um recorte reducionista que faz o recorte sociológico do que escrevo e penso que o mesmo acontece contigo.

E agradeço que o digas porque o sinto também: o amor é, nele, o primeiro motor. Em segundo plano gostaria que o livro fosse lido como uma homenagem à literatura, claríssima, desde o momento em que falo do incrível incêndio que devastou a biblioteca de Octavio Paz, a dois anos da morte, e que constitui o meu pesadelo desde sempre, até ao sonho delirante do protagonista com Jeanne Duval, a mulata que foi amante de Baudelaire. Só por último gostaria que as pessoas reparassem que o livro é também um thriller político – o que é apenas o pretexto. Mas sou obrigado a reconhecer, que como o livro oferece uma visão menos esperada sobre “a África dourada” que enxameia os imaginários românticos de meio mundo, talvez a dimensão política ressalte. Também eu, eivado por uma mentalidade de esquerda, aterrei aqui prenhe de paternalismo e em ruptura com “os racionalismos europeus”, para dar rapidamente conta de que afinal tinha lido mal O Pensamento Selvagem,do Lévy-Strauss. Como ele explica, o que se passa é que existem diferentes tipos de racionalismo e diferentes protocolos para a canalhice. Porque, assegura, o Ocidente não tem o exclusivo do mal.

Mas se o livro, o meu, tiver que sobreviver será pelos dois primeiros aspectos, I hope.

Você conviveu durante muito tempo com os maiores escritores-poetas de Portugal. Fale um pouco sobre esta convivência, em especial sobre a tua convivência com Herberto Helder e Al Berto.

O Al Berto era um poeta na vida e na escrita, uma criatura de uma alegria, duma intensidade humana e dum humor ímpares. Quem lidou de perto com ele, nos primeiros anos, antes da consagração unânime, não deixa de recordar a imaginação que punha no mais pequeno gesto, duma fantasia esfuziante. Contaram-me vários episódios com o Murilo Mendes que me faz pensar que seria do mesmo tipo. Uma vez o Al Berto foi a França a um encontro de escritores com a Agustina Bessa Luís, uma escritora mais velha que atraía o fascínio de todos mas cuja inteligência ferina causava um certo temor. E toda a gente a rodeava com paninhos quentes, com muito cuidado e reserva, pondo os lábios em bico e fazendo uso só de palavras elevadas. O Al Berto que estava na mesa com ela numa sessão pública deu conta de que o arranjo de rosas com que a organização havia decorado a mesa a incomodava porque a Agustina era baixinha e não via bem o público para quem lia. E então, espontaneamente, pegou no microfone e perguntou para o ar, no seu melhor francês, “alguém pode tirar daqui estas couves?”. Ficaram imediatamente amigos. Noutra ocasião, numa entrevista televisiva, perguntaram-lhe porque era ele homossexual, e ele respondeu, olhando o espectador nos olhos: «É um problema de hipotálamo, estou apaixonado pelo meu hipotálamo.» Por isso se tornou um ícone gay em Portugal, era absolutamente descontraído e natural na manifestação da sua sexualidade. E, ao contrário do que depois se tornou moda em Portugal, não associava à sua escolha sexual uma necessidade de proselitismo… Também a forma como morreu, as sua últimas entrevistas públicas, antes de o cancro o matar, foram um exemplo de dignidade e de coragem. Foi um homem tocado pela Graça, daqueles poucos de uma vida em quem reconhecemos uma pessoa plena. Aliás, era de tal forma irradiante a sua presença que nós, os amigos mais próximos, sentíamos às vezes ligeiramente aquém a sua poesia, que ganhou em densidade e fulgor com os anos. 

O Herberto é diferente. Frequentámos durante dez anos a mesma tertúlia e tivemos alguma comunhão e partilhas de livros e leituras. Havia um carinho mútuo, que ele quis “legitimar” quando espontaneamente aceitou colaborar na minha revista literária,Construções Portuárias, ele que sempre foi tão selectivo e cuidadoso. Mas era necessariamente uma intimidade muito diferente, um pouco mais contida, sobretudo por causa do seu temperamento que, embora caloroso, é mais intermitente e menos expansivo que o Al Berto.

Um aspecto curioso é que, apesar da alquimia profunda da sua linguagem, o Herberto alterna com grande à vontade a conversa sobre temas “nobres” e “espirituais” com o papo sobre coisas mundanas e quando está bem disposto e se solta o Herberto é capaz de grandes informalidades e adora uma boa conversa “entre homens” sobre sexo e mulheres.

Uma diferença separa estes dois poetas: o Al Alberto era um homem mais da vida, enquanto o Herberto é mais mallarmeniano, mais atravessado pelo livro; o Al Berto talvez fosse interiormente mais sereno que o poeta mais velho que é, surpreendentemente, mais inseguro. Mas há uma coisa em que o Herberto supera todos os poetas que conheci: é um homem permanentemente curioso, sempre em busca da perplexidade, que ama e não teme o novo e que quer ler tudo sobre tudo. Claro que como toda a gente também relê, mas ao Herberto galvaniza sobretudo o diálogo com a exterioridade e é nele que procura o seu lugar. Neste aspecto, o Herberto morrerá absolutamente novo.  

Você conhece o trabalho do cantor de rap Azagaia, em Moçambique, e o do cineasta Pedro Costa? O que acha da obra destes dois artistas, que de alguma forma utilizam a arte como um elemento de oposição política.

O Azagaia é um jovem corajoso mas que tem andado discreto nos últimos tempos, talvez por pressão política, como tem acontecido a muitos moçambicanos que começam como críticos intrépidos e depois ou são cooptados pelo partido do poder ou são vítimas de um ostracismo social e profissional terríveis. Ele já foi interrogado duas vezes pela Polícia Política e há poucos meses estenderam-lhe uma armadilha com droga para o desautorizarem. Penso que o seu sucesso é sobretudo urbano, pois é um jovem muito acarinhado pela imprensa da oposição, mas tem menor penetração nas camadas populares que têm uma mentalidade muito condicionada pelo mimetismo ou a coacção social. Como artista é muito ingénuo e tem muito a crescer, do mesmo modo que as suas letras, muito directas, ganhariam se ele fosse um leitor mais assíduo de poesia.

O Pedro Costa é de uma outra solidez. Fizemos juntos a Escola de Cinema, e sempre foi um tipo com uma visão e uma obstinação em persegui-la. O seu percurso, estético, político, ético, é exemplar e merece-me toda a estima. Neste momento será um dos faróis de referência de um cinema de autor que a frivolidade dos tempos e a ditadura dos mercados tende a sufocar e a denegrir na Europa. Mas como ele é um intransigente, quem vai ceder é o mercado, é uma questão de tempo. Veja-se o que se passou com o Manuel de Oliveira, que esteve 30 anos sem filmar. Devo ao Pedro três autores: Ramuz, Soupault e Elio Vitorini, e ele deve-me duas entrevistas aguerridas que lhe fiz nos jornais, e um poema que lhe dediquei, saído no Arte Negra:

 GINGAL, A MEIO CAMINHO DA SUA VIDA

                                     para o Pedro Costa

Entre eu e as luzes há um rio preto.

Imitação dos que extraviaram Ulisses

pela galhofa de deuses

cegos. Um rio preto.

Escrever é uma coisa tão pouca.

De umas vezes garantir fiado,

de outras amanhecer a medo

no rasgão que imprime a cidade

ao longe. Infindável rebentação.

Falo de uma insónia, claro,

dos olhos que desabrigam

lá dentro toda a memória,

quando se fica a roer um os-

so sob um céu de sépia

O Gingal é o longo cais que fica do outro lado do Tejo em Lisboa, e que está pejado de tabernas que eu e o Pedro gostávamos de frequentar.

Fale um pouco sobre a génese de A Maldição de Ondina e sobre o imbróglio burocrático que impediu a tua participação no Congresso Brasileiro de Escritores, realizado recentemente no Brasil.

A Maldição de Ondina nasceu como um conto largo que se foi apoderando de mim e espalhando as suas metástases. O romance assentou na sua quinta versão, depois de dois anos de reescrita. O editor, o escritor Nicodemos Sena, teve a paciência de as conhecer a todas. O livro rompe com os meus livros de contos anteriores que falavam dos ritos de passagem da infância e da adolescência. E passei dos cenários urbanos de Lisboa e arredores para a realidade moçambicana. Levei três a autorizar-me escrever alguma coisa, na ficção, sobre a realidade local, e a apanhar alguma coisa do linguajar local. Não foi fácil, há cristalizações difíceis de dissolver. O livro surgiu de um sonho. Adormeci um dia a reler o D. Quixote e sonhei que ele e o Sancho voltavam à terra, após cinco anos de não serem lidos no mundo, e andavam em peregrinação pelo mundo esventravando os não-leitores. Ao pequeno-almoço escrevi uma nota sobre uma invasão da Terra por personagens de ficção que se sentiam abandonados, como se fossem espíritos a quem se deixara de prestar o tributo. Levei depois um ano a congeminar como traduzir isto numa estrutura funcional de uma ficção passada em África.

Devo dizer que durante muito tempo hesitei atirar-me à novela porque o ritmo e o fôlego exigidos são muito distintos dos de um conto, género que domino. E espero não ter desacertado muito, o Hemingway por exemplo é muito superior como contista ao romancista que também foi.

O que me impediu a ida ao Brasil? Houve uma mudança tecnológica nos serviços de Migração de Moçambique e nessa altura “extraviaram-se” muitos processos de renovação do Dire (o BI para estrangeiros) e outros registos, o que nem sempre é admitido pela instituição. Eu fui um dos prejudicados com esta situação. E quem não colabora com “o esquema” pode ver a vida dificultada. De repente, por perda de processos, não há registos do passado do estrangeiro no país e da sua situação legalizada e desloca-se para este o ónus de provar que já teve documentos. E o estrangeiro vê-se assim empurrado para a irregularidade pela instituição que devia zelar pela sua legalização – é kafkiano. Eu tinha uma advogada há três meses a tratar do meu caso, e mercê dos documentos que tinha em meu poder que comprovavam que eu tinha razão no caso, o processo estava a correr na Migração sem atritos, embora as burocracias sejam sempre morosas nestas paragens, e, até à véspera da ida para o Brasil, a advogada dizia-me que a minha autorização de saída estava garantida. Acontece que uns dias antes mudou o Director Geral da Migração e como desconhecia os meandros do meu caso e que estava a ser tratado, ao ver o meu pedido de Autorização de Saída para assinar simplesmente indeferiu. Como isto aconteceu de forma inesperada e em cima da hora não foi possível recorrer a outra solução como pedir a intercedência do Ministro da Cultura, com quem trabalhei uns anos numa revista institucional, ou pedir uma audiência ao Director para lhe mostrar os meus documentos. Por isso pedi que travassem uma petição que andava a circular pela Net e que insinuava razões políticas para o meu impedimento de sair de Moçambique, pois isso, sim, podia acarretar-me represálias políticas. Pela mesma altura, o escritor moçambicano Mia Couto deu uma entrevista em Portugal em que afirmou simpatizar com o movimento de rebeldia dos jovens que sob o lema Indignai-vos tem corrido na Europa. Quando chegou a Moçambique tinha a ala radical da Frelimo (o Partido no poder há 38 anos) ofendida com ele, porque havia incitado à sublevação popular no país (o poder abaixo do Saahara anda preocupado com um possível efeito dominó provocado pelas revoltas populares no Norte de África) e o Mia teve de multiplicar-se em penosos e absurdos desmentidos. Este é um país onde a democracia dá os primeiros passos, titubeantes; no ano passado, no Orçamento Geral do Estado reservava-se à agricultura uma fatia menor da que era atribuída à polícia política. Não esqueçamos que aqui a taxa de corrupção é altíssima e que isso resulta em muitas deficiências nos serviços; com os esquemas que isso acarreta nas mais vulgares questões burocráticas. Conto para terminar o que aconteceu há uns meses a um amigo brasileiro, cineasta, que vivem em Moçambique há 28 anos. Um dia, ele entregou o processo para pedido de nacionalidade nos serviços respectivos. Quase um ano depois resolveu ir saber da sua situação. Chegou ao Ministério do Interior, apresentou o recibo que dava prova da entrada do seu processo e pediu um esclarecimento sobre o andamento do mesmo. Ao fim de uma hora de espera vieram informá-lo de que o processo se havia extraviado. Era melhor pedir uma segunda via, aconselharam. O que ele fez, e deram-lhe novo recibo. Um ano depois como estava sem notícias, voltou lá. Esteve de novo uma hora à espera enquanto o funcionário tentava em vão localizar o processo. E como via que ele não estava disposto a sair sem notícias, encolheu os ombros, e admitiu, apontando para um armário nas costas: “só se estiver neste armário!”. Quando abriu o armário, este parecia a gruta do Ali Babá abarrotada de processos. Vasculhou, vasculhou e lá encontrou uma pasta com o nome dele. E vitorioso veio mostrar ao meu amigo. Começaram a verificar os papéis e rapidamente conclui o meu amigo, “ah, mas este é o primeiro processo, o que estava perdido…e não o da segunda via, deste recibo!”. Não se desmancha o funcionário: “E não tinha dado entrada, não sei porquê. Vamos aproveitar e damos entrada a este…”. Daqui a um ano o meu amigo brasileiro voltará ao ataque… Seria tudo muito diferente se ele aceitasse pagar qualquer coisinha… É isto que se passa, grave, mas do simples foro da incompetência e do relaxe.     

O que você acha do acordo ortográfico e da chamada lusofonia.

O acordo não me ofende nem me arrefece. Como dizia o Deleuze há que gaguejar na língua para que a língua no seu próprio interior se torne bilingue, isto é, cito-o, o multilinguismo não é apenas a posse de vários sistemas mas antes de tudo a linha de fuga ou de variação que afecta cada sistema impedindo-o de ser homogéneo. Isto que sublinho é o que me importa no manejo de uma língua, é o que sempre foi feito por alguns e é o que continuará a ser feito, e isto não há acordo que o impeça. Agora, há o aspecto político da questão e aí é claro que o acordo existe para favorecer a indústria do livro brasileira, o resto são balelas.

Quanto à lusofonia manifesto reservas. Não sei como é no Brasil mas em Portugal fala-se em lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em «lusofonia» num país em que só oito por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. Aparentemente falamos a mesma língua, mas os códigos e protocolos da língua e os valores dos seus significados são tão díspares que nos sentimos num perpétuo território estrangeiro, o qual está minado pelos equívocos e mal-entendidos com que a aparência de uma língua comum, transparente, tornou bélico o terreno.

A lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério.

É como Prémio Camões. Em 2001 fui ao Brasil, tinha acabado de lançar Inferno, que escrevi em parceria com a Maria Velho da Costa, a quem fora atribuído o prémio há 2 anos atrás. Fui a várias editoras brasileiras tentar vender esse e outros livros dela. Ninguém sabia quem ela era. O eco do Prémio Camões não tinha saído das embaixadas. É patético. Não entender a inocuidade disto é grave, desajustado e redutor. Por isso a lusofonia lembra-me a deselegância de estar a martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.

O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.

Cite cinco filmes e cinco livros essenciais para a sua formação e diga porquê.

Vou-me cingir à prosa. Orlando, de Virgínia Woolf: fascina-me a metamorfose como tema e processo e a escrita de madame Woolf é avassaladora. Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry: foi uma das heranças do Al Berto, deixou-me esta semente lunar no sangue. Trópico de Capricórnio, de Henri Miller: um dos livros que salvou a minha adolescência desvalida, de pobre sem esperança. A Música do Acaso, de Paul Auster: gosto de todo o Auster, e da sua fantástica imaginação, mas este deixou-me em levitação. Heróis e Túmulos, de Ernesto Sabato: bastaria o Relatório de Cegos para ser para mim um dos romances do século XX. E não posso esquecer todo o Cortázar, todo o Nabokov, todo o Kadaré, toda a Clarice Lispector, todo o Gombrowicz.

Filmes: Amarcord, de Fellini. O Fellini é mais um daqueles que me imita em tudo, até na tentativa de não ser eu. Viridiana, de Buñuel: que me decidiu a nunca ter cartão de nenhum Partido porque me fez perceber que os pobres não são assim tão bonzinhos; Irma, La Douce, de Billy Wilder, e Some Come Running, de Vincent Minelli: a Shirley MacLaine bastar-me-ia, mas depois já os guiões, a elegância, o ritmo, o humor. Táxi Driver, de Scorcese: porque desafortunadamente não o escrevi, o que é uma das provas da inexistência de Deus.

Junte-se todo o John Cassavetes, metade do Godard, todo o Tarkovski, o Woody Allen, o Lawrence Kasdan, o Bergaman, o Clint Eastwood, sei lá…

Fale um pouco sobre Respiro, o seu último livro lançado em Moçambique e sobre os seus planos para o futuro recente, no terreno da criação artística.   

O Respiro não foi lançado em Moçambique mas sim em Portugal. É um ensaio onde procuro explicar que vivemos todos em níveis de realidade e em graus de percepção da mesma muito distintos pelo que não há uma realidade unidimensional euma ou a poesia, mas antes diferentes manifestações expressivas de modos de penetração em diferentes tipos de realidade. Corolariamente, tento insinuar que há poesia do imaginário, e poesia do imaginal, consoante os tedodolitos. Enfim, nada de muito importante. Um pequeno excerto:

«Lembremos a hipótese que convoquei num prefácio a uma tradução de Juan Luís Panero: há, no que toca ao modo como se relacionam com a linguagem, duas linhagens de poetas. Para uma família de poetas a linguagem é um instrumento auxiliar para criar objectos verbais que se manifestam em declarações espirituais, psicológicas ou políticas. Este tipo de poetas serve-se das palavras para expressar ou digladiar os seus conflitos e visões.

Existe por outro lado uma outra prática da poesia onde a linguagem é em si mesma, um problema, um conflito já existente, uma dobra: «Suscitar a forma do pensamento,/ recortá-la segundo uma medida./ Penso num alfaiate/ que seja o seu próprio pano.», escreve o italiano Valerio Magreli. Ou atentemos noutro poema, de Herberto Helder: « (…) E é tão compacta a malha/ da carne tão/ rude, O fluxo que se/ desenreda, Como se o corpo todo fosse uma veia,/ Uma traqueia de onde irrompesse um som/ – árduo árduo/ e agudo,/ E a boca respirando se tornasse/ numa bolha, O rosto como uma víscera,/ Que brilhasse varada pelo sangue: alta/ e ríspida: e brilhasse ainda/ quando o dia transparente transpusesse: / porta/ a porta:/ tudo, As mãos: a cabeça/ entre as mãos: a voz/ entre fôlego e escrita, Nas cavernas/ do mundo».

Neste tipo de poesia o poder da palavra germina a partir do seu próprio fulcro, não traduz outra coisa; o poeta não se serve das palavras para traduzir uma “realidade” pré-existente, antes intui, como diz Octávio Paz, o autor da hipótese em presença, que elas são o referente e são tão reais como as árvores, as casas, os aviões e as paixões. As palavras aqui não são signos que representam mas o concreto das coisas tal e qual de uma “outra” realidade.

Um poeta desta linhagem, Valère Novarina, chega ao extremo de afiançar que a palavra nos é mais interior que todos os órgãos internos. E relata: o Bucha e o Estica estão sentados num banco de um jardim, de costas para um arbusto. Um carteirista introduz a mão por entre a ramagem e tenta tirar a carteira do bolso interior do casaco do Estica. Só que este, entretido com as suas mãos num devaneio patético, toma a mão do ladrão por uma das suas, com todas as implicações que se enredam numa multiplicação das mãos.

A genialidade do gag advém do dilema de que é tomado o Estica na escolha obrigatória de uma das mãos – visto que aparentemente tem três e só se lembra de ter tido duas. Qual das duas são as suas e qual é a que terá de dispensar, é a sua primeira interrogação, mas depois vem-lhe outra dúvida mais fecunda: e porque não ter três mãos? E começa a olhar para a terceira mão com delícia, como algo que sempre lhe pertenceu naturalmente, ao ponto de ter tirado uma lima do bolso do casaco para lhe arranjar as unhas, para essa mão ficar como as outras. E está a limar a unha quando o Bucha lhe bate na mão que se entrega a essa tarefa e lhe faz entender – porque o Gordo também não acha estranho que o Estica de repente tenha três mãos – que o mais rico dessa mão nova é ser diferente das outras. E o Estica fica todo contente por poder ter uma terceira mão tão diferente. Aceitar a Graça desta terceira mão, equivale, para mim – porque é uma Graça aceitar oestranho como parte de nós – ao trajecto que o poeta russo Mandelstam sinalizou nesta fórmula: Como Orfeu, o poeta é aquele que percorreu toda a distância do profano ao sagrado e cuja memória é vidência.»

Quanto a projectos futuros, em 2012 vou realizar um documentário de 50 minutos sobre a arte moçambicana, isto está certo. Vou começar a rodar em Março. Espero voltar finalmente ao Brasil e tenciono fechar-me a escrever um dos dois romances que me agitam o escuro esplendor das gavetas. Não sei ainda qual deles terá um maior ímpeto para o parto.

Quais podem ser os pontos de contacto entre o Brasil e Moçambique, se é que eles existem. Você poderia falar um pouco sobre isso e o que o levou a trocar Portugal por Moçambique?

Bom, o que me trouxe para Moçambique resume-se a dois motivos.

Na altura estava muito desapontado pois tinha feito um enorme esforço para montar um projecto editorial que foi reconhecido como de bastante qualidade mas que caiu por absoluta falta de ética das distribuidoras em Portugal, sem que eu conseguisse que nenhum jornal fosse sensível ao problema grave que já se desenhava no sector e denunciasse a situação que descambou no absoluto marasmo e carnificina que é o mundo da edição neste momento em Portugal. Tive de ganhar mais um prémio literário para pagar as últimas dívidas à tipografia, despedi-me do Expresso e vim-me embora. O segundo motivo é pessoal: tenho o destino de amar uma moçambicana. A vida ser-me-ia facilitada se tivesse derivado na geografia afectiva para o norte e para a Noruega por exemplo, ou talvez para a Escócia, onde alternaria o golfe e o alpinismo. Calhou-me uma indiana de Moçambique, eis-me conformado, e moderadamente feliz na minha conformação, ainda que tenha descoberto que detesto palmeiras e coqueiros – coisinha mais monótona não há. Uma palmeira, cuja sombra nem consegue acoitar um encontro clandestino, não chega a ser uma árvore: é um pêlo púbico agrafado numa folha azul.

Quantos aos pontos de contacto, há uma coisa surpreendente e que entra pelos olhos dentro para quem conhece: Maputo é uma cidade extremamente parecida com Belém do Pará. Em tudo, do urbanismo ao ambiente social. Só falta aqui a inteligência do Benedito Nunes. Depois há uma inassumida cultura de mestiçagens, um cosmopolitismo apesar da descrença em si mesmo, uma mecânica gingada do “deixa-andar” que penso serem afins em Moçambique e no Brasil. Assim como um semelhante gosto pela dança e a música. Mas claro que em termos de desenvolvimento será o Brasil dos anos 40, depois de rasgado por uma guerra civil que tivesse destruído metade das infra-estruturas.»

08/05/2011

AOS INDIFERENTES

por cam

Num tempo de descrença, desmobilização e desconfiança – nas instituições e talvez em nós própios – deixo aqui esta reflexão de Antonio Gramsci (comunista italiano: 1891-1937, nesta página está alguma informação a ler com reservas), que retirei da página do FB do meu amigo Domingos Morais. A fonte original está aqui. O português é o do Brasil.

«Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que “viver significa tomar partido”. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.»

10/04/2011

VÃ GLÓRIA

por cam

«Tão-pouco se poderá chamar virtude massacrar os seus cidadãos, trair os amigos, não ter palavra, nem piedade, nem religião, meios este pelos quais se pode conquistar o comando mas não a glória.»

Maquiavel, O Príncipe (VI)

14/03/2011

O INCRÍVEL PIERRE

por cam
Pierre Rivière, ed. port.

Pierre Rivière, ed. port.

 

Pierre Rivière, ed. fr.

Pierre Rivière, o filme de Allio

Leio Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma Mère, ma Soeur et mon Frère… un cas de parricide au XIXème siècle, apresentado por Michel Foucault, na versão portuguesa de Maria Filomena Duarte (edições Terramar, 1997). Quando conheci a edição francesa (de 1973), comecei a alimentar uma ideia de escrever um texto teatral, projecto que fui adiando, em especial pela dificuldade do texto francês. O livro inclui várias peças do processo judicial, testemunhos, etc, mas sobretudo o incrível “memorial” do jovem Pierre, de 20 anos, onde confessa os crimes (de uma extrema violência) mas em especial as suas motivações – em síntese, os maus tratos que segundo ele a mãe infligiu ao pai durante quase duas dezenas de anos, e uma auto-análise do seu próprio comportamento. Talvez seja desta que sai teatro… (o pior – ou melhor, quem sabe – é se isto se mistura com o século anterior e Moçambique…).

Nunca vi o filme de René Allio (1976), tenho de o procurar.

01/03/2011

VENHA O DIABO…

por cam

Há quem inveje as pessoas que se retiram dos grandes centros urbanos e se fixam, por exemplo, numa ilha no meio do oceano Atlântico – como eu, aqui na ilha do Pico.

E há quem possa ter o prazer de participar, por exemplo, em eventos como o que abaixo ajudo a divulgar. E…

Venha o diabo…

Colóquio Internacional Jacques Rancière, que vai decorrer nos dias 15 e 16 deste mês, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (por onde andei entre 1984 e 1990, nas antropologias). Organizam cientificamente o evento Golgona Anghel, Vanessa Brito e Silvina Rodrigues Lopes.

Aqui fica o texto de apresentação:

“Abrir um espaço entre nós e as palavras, criar dissensos, é, para Rancière, o próprio coração da política e a condição do pensamento. Pretendemos neste Colóquio tomar essa tese como incitação a uma reflexão que não se limite a explicitar as relações poder/saber e os dispositivos de legitimação e institucionalização que as concretizam. A escrita enquanto pensar/agir – capaz de evidenciar e de deslocar as operações de unificação do mundo constituídas por ficções consensuais que procedem à naturalização das relações tecidas em palavras e imagens – será, pois, o tema orientador. Partir-se-á da leitura de livros e textos de Jacques Rancière, insistindo em conceitos neles decisivos, como os de igualdade, de emancipação, de partilha do sensível e de história, que estão na base da conceptualização da possibilidade de incessantes reconfigurações do mundo, segundo as quais, poesia, literatura e filosofia partilham a capacidade de dar existência ao que era imperceptível apesar da sua operatividade. Essa é a possibilidade de conceber a história em termos não-deterministas e de escapar aos mecanismos identitários: experiência de afirmação da igualdade que implica uma atenção às palavras da literatura que não as reinscreva nos circuitos do estabelecido e às palavras anónimas com que se fez história e ficaram ignoradas pelo ruído de modelos narrativos que impuseram uma lógica de exclusão.”