Cuidar dos mortos [ensaio-antropologia]

 

Cuidar dos Mortos

[…]

2. Repertório do cadáver

 “Elhe, mãe, bomecêi stá muito mali, se calhar já no tchega

ámanhèm, vou-m’a sfragar a casa e árranjar o lórero qu’adepoi

no tenh’tempo.

Pei sim, fila, and’árranja lá tudo que Noss’Senhôr to pagará”

O fim próximo de cada um, quer a morte seja ou não temida, não se oculta aos moribundos que são advertidos de que é chegado o momento de serem sacramentados. Podem mesmo os vivos ajudar a decidir da morte dos que estão muito doentes: “Certas mulheres que vão às casas ajudar a morrer os doentes que estão na agonia, gritando-lhes à cabeceira, para afugentar o diabo: “«Ande, diga comigo do fundo do seu estômago: Ih, Jesus, que morro»” ; também as despenadeiras “para abreviarem a agonia do moribundo cravavam-lhes os cotovelos sobre o peito, a caixa torácica; às vezes os doentes pediam por misericórdia «que não os despenassem ainda»”. As bruxas, ou como tal alcunhadas, não têm nas mesmas circunstâncias, melhor sorte. A uma do concelho de Tondela “nove pancadas capazes de produzirem o milagre [afastar o demónio], lhe eram aplicadas com o pau da cruz, por uma vigorosa pitonisa [análoga às despenadeiras] (…) e passados alguns minutos a pobre sucumbiu, ou vítima da pancadaria ou porque a morte tinha soado!”. Também se decide pela vida ou pela morte com a ajuda dos remédios da desempata: “um certo medicamento que os médicos dão decide da vida ou da morte – se ainda tiver um sopro de vida, vive e cura-se, se estiver destinado a morrer isso acontecerá imediatamente”. Logo que o moribundo expira fecham-lhe os olhos “porque, indo para a cova com eles abertos, em breve faleceria uma pessoa de sua casa; fecham-se pondo-lhes vinténs em cima”, sendo tal feito normalmente por uma pessoa de família. A boca e as outras entradas do corpo são também por vezes tapadas, “o ânus com uma estriga de linho, cera nos olhos e no umbigo, algodão na boca, nariz e ouvidos”. É retirado da cama o mais depressa possível, e depositado em cima de uma mesa, em cima das grades de arar ou em terra: “Logo que alguém morre coloca-se sobre a grade ou sobre o arado ‘para ser bem aceite de Deus o pão que ele comeu em terra’ ” ou “para não ficar em penas”. De seguida é lavado, por vezes com a ajuda de certas ervas, e barbeado. A cara é coberta com um lenço ou com um pano: “por um lenço de seda, geralmente o que serviu na época do casamento”. As pernas e as mãos são atadas, estas com um rosário, um terço ou fita branca. São conhecidos casos de alfinetes nos lábios, nas roupas ou depositados no caixão. Enquanto o cadáver é vestido vai-se falando com ele: “Levanta o braço F . (nome próprio), levanta a perna F ., etc, à medida que o vai vestindo”. As roupas que leva vestidas são as que habitualmente usa ou, mais frequentemente, com as suas melhores peças, “os melhores fatos de ver a Deus”, ou com o fato de casamento, normalmente pretos no caso dos homens, e guardados especialmente para o último passo. Os homens podem ainda levar o seu chapéu e as mulheres os seus brincos, muitas vezes hábitos religiosos (manto de Nossa Senhora das Dores, entre outros). As crianças são vestidas de branco, bem como as mulheres velhas solteiras que também levam um véu da mesma cor. A mortalha com que se embrulha ou cobre o morto é habitualmente branca – lençóis, toalhas de renda com letras bordadas a negro. A posição do cadáver no caixão é normalmente a seguinte: decúbito dorsal e mãos postas ou atravessadas sobre o peito, os braços “de maneira a que no juízo final possa fazer o sinal da cruz: o braço esquerdo ao longo do corpo e o direito dobrado em ângulo sobre o peito”. O fundo do caixão também não é deixado ao acaso: normalmente é coberto com folhas de buxo ou de loureiro, com flores brancas, e sobre elas é colocado um cobertor ou um lençol e um travesseiro. O forro é habitualmente branco. O cadáver no caixão é acompanhado de objectos vários depositados pelos familiares e amigos mais chegados: terços ou rosários, livros de orações, a Bula da Santa Cruzada, contas e agulhas enfiadas com linhas e particularmente alimentos, sobretudo água, vinho e pão. O chamado dinheiro de Caronte, pode estar simplesmente depositado no fundo do caixão, dentro dos bolsos, ou colocado sobre os olhos, e na boca: “No Marco de Canaveses, em algumas freguesias, metem no caixão uma moeda de 5 reis, umas contas e uma agulha enfiada. A moeda é para passar no campo de Josafaz e meter na boca do Diabo, que está lá de guarda; as contas são para o morto se ir encomendando aDeus, e a agulha para se remendar no outro mundo. Para outros, a moeda é para passar na barca de S. Tiago (…). Noutras freguesias do mesmo concelho, lançam igualmente no caixão a moeda de 5 reis, uma côdea de pão, para dar a 1 ou 2 ladrões que estão de guarda à ponte, e atam as mãos ao morto com um rosário (…).

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