O que importa registar é que com tal acumulação de “quatro em cinco” nos últimos anos eu devia viver na Califórnia e ter dois dobermans no jardim. Prescindo bem da Califórnia. Mas já mói o que Hugo Pinto Santos repara no seu texto: «Poeta, ficcionista, ensaísta, António Cabrita editou (só em 2011) um título em cada uma das áreas, respectivamente Não se Emenda a Chuva, O Branco das Sombras Chinesas (outro “quatro estrelas em cinco”), e Respiro (faltaria aqui o meu romance no Brasil, nomeado para finalista da Telecom, e que vai ser editado pela AbYsmo). Que essa produção tenha sido acolhida com um silêncio quase total, eis o que se pode lamentar ou tentar inverter.» Não há nada a inverter. Não creio que Portugal possa ser um país menos mesquinho, menos desatento, menos cretino, mais justo do que é. Vejo as dificuldades com que o Carlos Alberto Machado vive no Pico, sendo talvez o dramaturgo da sua geração, e com a gaveta cheia de excelentes inéditos de ficção que não consegue colocar, vejo como rebolam todos agora diante do Rentes de Carvalho quando o silenciaram durante décadas e só porque felizmente agora o Rentes agora publica numa editora que conquistou uma boa relação com os media (se os “mesmos livros” do Rentes saíssem, por exemplo, na Afrontamento permaneciam no mais absoluto limbo), vejo como o Grabato Dias, um génio, continua a ser absolutamente desconhecido, sem que ninguém morra de vergonha por isso, vejo como o Manuel da Silva Ramos, uma das maiores imaginações-em -acto que conheci na vida (e já conheci algumas) continua a ser menosprezado, vejo como o Paulo José Miranda, o primeiro Prémio Saramago, e um talento total, tem tido uma carreira absolutamente acidentada apenas porque editou os primeiros livros na Cotovia, editora que nunca acolheu as preferências dos media apesar dos bons livros que editava, vejo como o Henrique Fialho continua sem editora para a sua produção profícua e inteligentíssima – e sei: nada há a esperar de um país cujos azimutes são subterrâneos. Até ao fim de ano tenho mais dois livros para sair, dois em Moçambique: «Para que Servem os Elevadores e outras indagações literárias», ensaios, pela Alcance, e «Inventário de Todos os Passos em Falso», uma antologia poética, também pela Alcance. E preparo, com essa excelência oficinal que o Hugo Pinto Santos me atribui, e cito: «Estas ficções de ambiência moçambicana, com personagens de carne e osso, distinguem-se pela disciplina da frase e pela boa gestão dos recursos à disposição – “O mar é o grampo que segura aquela casa de madeira à duna”. Dir-se que “grampo” é a palavra chave mas a chave deste como de outros achados de António Cabrita está antes na solidez da sua oficina, e não em qualquer truque isolado». Fico contente que ele note, que por detrás da transparência da escrita as articulações sejam sólidas. Ainda que pense que esta mesma solidez seja o que assusta quem prefere silenciar-me. Não tem mal, com a consciência oficinal que adquiri e a certeza de uma grande disciplina no trabalho sei que preparo para o ano que vem uma fornada de “cinco em cinco”, porque quando se persiste e não se deixa o talento à deriva é natural que as coisas cresçam. Vai ser tudo publicado no Brasil. Portugal que se foda. Entretanto, chama-me a Jade da banheira: «Bela Adormecida, chaleira…» (em Moçambique não é líquido que os elevadores ou os termo-acumuladores funcionem), e repisa, visto que não lhe respondo logo, «… então, Bela Adormecida, a chaleira…». Tenho uma filha de cinco anos que me chama – por carinho, não por desrespeito – Bela Adormecida. Melhor coisa não há… é isto e a escrita. »
A solidez da oficina e não só
LER, SIMPLESMENTE
Vai chegar, ou já chegou, o tempo dos “livros de férias” (ou “para férias”)… É a praga que nos assalta, vinda nas asinhas e nas peles escamadas de “jornalistas” “culturais” e nos inefáveis “suplementos de férias”. Tudo regado com aquela coisa chamada “vinho” rosé (ou verde 3 Marias & afins, também “vinho”, dizem…). Ou chá. Ou café. Ou…
É uma praga para quem, simplesmente, lê. Os jornais e revistas, habitualmente parcos em trabalho sobre livros, leituras e leitores, ficam reduzidos a absoluto lixo – o novo “género” chamado “de férias”, ou “para férias”.
Quem é sensível a estes conselhos, em férias na praia (no campo, onde se queira), não continua as suas leituras que já vêm de trás, do tempo de não-férias, não, armam-se essas pessoas de livros “de férias”, ou “para férias”, comprados em super-mercados, por conselho dos tais “jornalistas” ou de vedetas televisivas. Vivemos em democracia, apregoa-se, e só temos de nos convencer disso, não há outro remédio.
Nestes meses, eu que não tenho férias “normais”, continuarei a dedicar-me aos livros amontoados na secretária de trabalho, na mesa-de-cabeceira e em outros locais domésticos. Tenho feito um esforço para não cruzar muitas leituras e, assim, por agora agarro-me com imenso prazer, ao Danúbio, do italiano Cláudio Magris, uma escrita delicada, culta e de uma enorme sensibilidade sobre a área a que os alemães no final do século XIX chamaram de Mitteleuropa, e que cobriria, toda a Europa Central, parte do Império Russo, zona dos Balcãs, etc. O conceito tem uma actualidade extrema, diga-se. No seu deambular pelo Danúbio – que só foi azul na valsa do Strauss, e que é cinzento-amarelo-lama – Magris fala da história (muito), de grandes nomes da literatura, da filosofia, do pensamento (mas também do quotidiano), com uma sensibilidade e um cuidado literário de excelência. O modo como muitas figuras são evocadas dá-nos visões de uma singularidade inteligente, a obrigar por vezes a deixar a leitura e a ir folhear as páginas desses autores, à luz de outros pontos de vista, quase sempre originais. Vou a pouco mais de meio mas sei que quando o terminar terei de voltar e voltar. Ah, a edição que tenho veio com uma revista semanal, ao “preço da uva mijona” – é de aproveitar, num jornaleiro perto de si!
Antes deste, li duas obras portuguesas, bem diferentes entre si e nos seus propósitos literários, mas ambas de uma grande qualidade: Retorno, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China) e Autismo, de Valério Romão (Abysmo).
Embora saiba que muito provavelmente não cumprirei o que estabeleci para próximas leituras, eis o que poderá interessar quem leia estas linhas: HHH, de Laurent Binet (Livre de Poche), Caríssimas 40 Canções, de Sérgio Godinho (Abysmo), Elegia de Cronos, de Nuno Dempster (Artefacto), revista Criatura, Ensinar o Caminho ao Diabo, de Miguel-Manso (ed. autor), Corpo, Arquitectura, Poema, de João Borges da Cunha e Jorge Fazenda Lourenço (Assírio & Alvim), A Poesia Ensina a Cair, de Eduardo Prado Coelho (IN-CM).
PATERNIDADE FALHADA
Autismo é um perturbante romance de Valério Romão (nascido “em França, nos idos de 1974.”). A edição é da Abysmo (Abril de 2012, ilustrações de Alex Gozblau).
O autismo de uma criança faz deflagrar uma violência – relacional, comportamental – numa família (com referências reais) e o romance tece-se numa estrutura que procura dar(-nos) conta dessa violência e do que ela arrasta, procurando evitar, contudo, que o leitor não seja de todo submergido na teia de morte que atravessa a narrativa, tanto mais forte quando muitos dos leitores sabem (ou adivinham) que por detrás da literatura medra (ainda?) a poderosa teia do sofrimento e da culpa.
A fragmentação das vidas expostas é-nos dada pela diversificação dos narradores, pela polifonia de vozes e pelos diversos modos de dizer. Tomando o filho autista (Henrique) como elemento central, temos as vozes de Abílio (avô), Rogério (pai), mais presentes, e de Marta (mãe) e de Amélia (avó) – pais de Marta. Todavia, se estes narradores se apresentam na tradicional descrição de acontecimentos, ou, mais frequentemente, sobre os seus sentimentos e os dos outros, Marta surge, através de discurso directo, em pequenos capítulos intercalados, nas suas (patéticas) tentativas de comunicação com o filho, na sua persistência em ter com ele uma “comunicação de qualidade”. Marta, através do mesmo dispositivo dialogante, entabula conversas com terceiros (incluindo o marido, Rogério). O narrador impessoal surge igualmente, intercalando-se as suas intervenções, tal como os outros, com peças de diálogos.
Por outro lado, o romance estrutura-se em pequenos capítulos centrados em momentos ou situações-chave: as referidas tentativas de comunicação da mãe com o filho autista (“Um ano, sozinhos” – que vai de I a VI) e “Urgê cias” (sem o “n”, reproduzindo a placa falhada no hospital), que vai de I a VII: estes capítulos referem-se à situação de espera angustiosa que pais, e depois avós, fazem nas urgências de um hospital onde entrou acidentado o Henrique, e ainda, próximo do final do livro, “Entradas” de um blogue escrito pelo Rogério (1 a 5). Pelo meio, várias situações dos pais com pediatras e outros especialistas – capítulos que, entre outras funções, não negam a necessidade de o autor deixar elementos de natureza didáctica sobre o autismo e alguns modos de o encarar ou procurar resolver (atenuar consequências). Se o essencial das relações humanas está no trio mãe-pai-filho, a relação (desgastada e conflituosa, a raiar o abjecto) dos pais de Marta tem uma certa relevância.
Nesta estrutura, Romão dá-nos momentos de grande intensidade – dor, abandono, morte – que de algum modo são “compensados” com outros de algum humor (o Fabuloso Dr. Miguel Relvas, a alemã homeopática, o charlatão brasileiro), a par de uma linguagem repleta de imagens, mesmo para coisas ou situações de menor importância narrativa. Estes expedientes “aligeiram” a carga emocional, e o suspense, que vai quase do princípio ao fim do romance, que se baseia na ausência de informação sobre a situação hospitalar de Henrique. Pessoalmente, gostaria mais que Valério Romão tivesse optado por uma estratégia que deixasse ainda mais visível o estilhaçamento das vidas e tudo o mais. Aliás, o final (inesperado?) parece deitar por terra todo o cuidado posto pelo autor em evitar “dor a mais”. Seja como for, este é um romance raro, perturbador. É, pois, de aguardar com as melhores expectativas os dois que se seguirão – Autismo é o Volume I da trilogia Paternidades falhadas.
MÁ RAÇA
Em “Má raça. 22 canções”, desenhos de Alex Gozblau e poemas de João Paulo Cotrim (Abysmo, 2012), dá-se o acontecimento, de alguma rareza, das imagens desenhadas e palavras escritas entabularem variados diálogos, que tanto podem ser amistosos, de enfrentamento ou de relativo afastamento. Mas nenhum do trabalho é reflexo do outro (versão simplificadora que reduz o real a um congelamento impossível), e muito menos os desenhos são meras ilustrações (no sentido de tradução de uma linguagem para outra, de acréscimo de sentido a uma verdade prévia). O que parece haver é desdobramentos de sentidos de um universo que se dá (pela imagem e pela escrita) ao leitor – também ele convidado ao jogo da diversidade em movimento que o livro é. A haver espelho ele será poliédrico; espelhos mutantes – como a realidade escorregadia, deslizante. Falei em mutante e apercebo-me como esse termo pode de certo modo ser a marca do que neste livro se produz. Com efeito, os dois autores criam figuras e paisagens humanas que habitam zonas incriadas ou personagens que já deixaram de pertencer ao jogo de símbolos com que nos habituámos a olhar o mundo e a ter a confiança de o perceber. A palavra que parece pedir uma outra e logo se recusa a isso, numa suspensão ou na oferta de uma inesperada outra, mas numa lógica que não lhe é anterior mas que se faz ela própria nesse jogo ora suave ora abrupto de sentidos. Um bricolage feito não de restos mas de pedaços vivos de corpos vivos, bricolage estonteante que parece correr por vezes às cegas porque sabe que o corpo, os corpos, morrem mesmo. O bricolage reconstrói mas não ressuscita. Mas se isto é justo para as palavras (será?), é-o de igual modo para as imagens desenhadas. Nestas, na sua linguagem própria, o desacerto do mundo e daqueles que o habitam torna-se rigoroso, se assim se poderá dizer. Não há restos, nestas imagens, como se o desconcerto estivesse concertado. O terrível que quase deixa de o ser. Não gosto de comparações, mas não se pode deixar, creio, de evocar muita da literatura “negra”, ou a fotografia de autores como Witkin ou Francesca Woodman (sem esquecer as grandes diferenças entre eles).
A noite é a luz deste livro – noite a brilhar na noite, como sabem todos os seres que a habitam e que nunca conheceram o sol, ou dele já se esqueceram, porque sim ou porque não. Os corpos dançantes, inconstantes, roupas enxovalhadas, os líquidos que sem fim se ingerem, a música que se ouve e por vezes enlaça e morde os corpos, o amor que corta as almas, circo cantante, teatro fantasmático. A madrugada que dá a volta sobre si mesma para de novo ser noite, “cosendo lábios às coisas que se dizem / no viés da rotina.”
Resta dizer que este livro é, como todos os que o João Paulo tem feito nestes poucos meses de vida da Abysmo, um belo livro (e apetece dizer: terrível).
LIVROS & COMPANHIA
Estive em Lisboa, onde participei no Dia da Poesia do CCB (leitura e exposição de manuscritos). Voltei com livros de poesia: Poemas de despedida, vol. VII, seguido de 7 poemas, plaquette “doméstica” do Fernando Machado Silva, Resumo, a poesia em 2011, antologia (oferecida…) dos melhores de 2011 FNAC/Assírio, aliás, Documenta, de que gosto muito pois dela sou sistematicamente excluído, Rui Noronha (poemas gravados em CD), Má Raça, do Alex Gozblau e do João Paulo Cotrim, e 5 pequenos livros de Carlos Mota de Oliveira (edição de autor).
Na casa do correio tinha à minha espera as ofertas Câmara Escura. Uma antologia, da Inês Lourenço, e Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo e K3, ambos do Nuno Dempster. Boas companhias, portanto.
MÁ RAÇA, 2
O livro Má Raça (poemas de João Paulo Cotrim para ilustrações de Alex Gozlau), será lançado hoje, dia 13, às 22 horas, na 4A Fábrica (Rua João Anastácio Rosa, 4A, Lisboa – pode ver mais detalhes da edição aqui). Desta edição especial serão apenas publicados 25 exemplares de cada giclée (pássaro ou cão, em baixo), assinado e numerado.
MEXIA E AS COISAS
DEDICATÓRIA
I shall never get you put together entirely,
Pieced, glued, and properly jointed.
Sylvia Plath, The Colossus
Escovar bem as palavras, libertá-las do sarro do uso.
Devolver às palavras a sua natureza de pedra, a sua intensidade, a sua natureza da corrente de rio a fluir de si para o ainda-por-conhecer.
O espanto e o maravilhamento refugiados sob as nossas peles.
No princípio era as palavras “lírios”, ou “Eva”. Ou outras. Depois o remanso do silêncio. E só depois as palavras. “Coisas”. Não em lugar de.
Sobrevieram tempestades de lixo, destemperos divinos. Despedaçaram as palavras-pedra, as palavras-em-movimento.
Miríades de estilhaços para recompor um nome ainda desconhecido.
Repetições. O silêncio não é falha de palavras, é o prenhe de tudo, mas não sabemos como.
“Demasiadas palavras armadas em metáforas. “Vazios” – precisar de “uma pele capaz de os alojar.”
Um corpo é um pedaço de tempo, irrecuperável.
«Flectindo o dorso estendo a mão cega até à palavra que te procura (…) / que mistérios ocultará essa palavra tão longe e tão perto desta mão? / (ou é apenas o lado errado da noite?).»
As coisas não envelhecem, morrem de um golpe só. A morte é passar o tempo a tentar limpá-las com restos moribundos, as palavras.
As coisas ferem. É da sua natureza. E depois riem.
O tempo implode. Sonhamos com outra dimensão espaço-tempo.
Os nomes são remendos. Ou a derradeira hipótese de colar os fragmentos.
Pode haver um Nome, mesmo assim. Mas terá de ser Coisa.
Com a memória ajustamos medos e renovamos segredos. Coisas caladas.
O coração é um imenso buraco aberto no peito de onde olhamos o que não foi. “As coisas conhecidas são pedras e poemas. E o teu nome / sempre infiltrado nos versos.” «a tua pedra negra regressa à minha mão fechada / e ilumina como um sol a minha noite em claro».
«Longe, junto a um rio, há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.»
Um nome branco bordado em branco a apagar os pecados. “papel químico encostado ao tempo.”
As palavras, «sucessivas camadas de palavras por dizer», ardem sob o teu nome, sempre o teu nome. Por dizer.
As palavras nunca dão “resultado certo”.
“As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.” Para o contar é preciso sacudir «a escama estéril das palavras».
Morro todos os dias com uma recordação na pele e “o som atenuado de uma canção.”
Nas coisas não se vaza memória, o escorrimento obstinado do tempo.
Os nomes são repetições, sujeitos a defeito de fabrico.
Os espelhos reverberam ausências. O excesso de cristalino elide a memória.
Conhecer um rosto sem o atrito de um nome.
Sob a pele um mapa de nomes.
Há uma infância onde os nomes respeitam as coisas. Depois vem a memória.
Chegar às coisas, torná-las inanimadas, é isto a morte.
Também a morte tem uma arqueologia.
As coisas são o que são, resistentes à desordem do universo.
Por ti, «esconde a palavra-talismã»
Palavras pagam-se com palavras.
Dedicatória.
{ lendo As Coisas, da Inês Fonseca Santos, edição abysmo, Janeiro de 2012 }
A REALIDADE TAL QUAL ELA NÃO É
ou
SUA EXCELÊNCIA, O LEITOR
Retomo o que escrevi em post anterior (“artigo”, lhe chama o WordPress, quanto a mim mais apropriadamente): “Gosta-se de livros pelos seus “conteúdos”: pois. E o “resto, não é livro? Estas e outras dúvidas mais ou menos idiotas desvanecem-se quando temos entre mãos livros editados pela abysmo”, como “(…) «Uma História de Amor no Casal da Eira Branca», de Tomás Vasques, com ilustrações de Susa Monteiro – e pronto, vão as tais dúvidas a ganir alto e forte para longe.” O texto de Tomás Vasques, as ilustrações de Sua Monteiro, o design do livro da responsabilidade de Luís Mendonça casam-se na perfeição. Todos sabemos que, por definição, não há casamentos felizes, e que neste caso, além disso, o casamento se assemelha a uma relação com três vértices, o que na língua dos valentes gauleses se conhece como ménage à trois. Felizmente que os livros não se colhem na realidade como as margaridas e que a sua natureza é outra, digamos, mais apetecível para matutinos despertares de sonho – ou para noites pesadas de chumbo.
Perfeições à parte, já perceberam que o livro me motiva. Como ando ainda a aprender a falar de outras artes que não a da escrita, vou-me só a esta, onde escorrego menos.
Este «Uma História de Amor…» é o primeiro texto ficcional de Tomás Vasques que leio – e a ausência de referências é sempre, para mim, um desafio suplementar, o da “leitura sem rede.” De uma primeira leitura do curto texto – 30 páginas, incluindo ilustrações – ficou-me a impressão de estar perante um guião de um romance, uma intriga minimal para aguentar as figuras e situações desenhadas a traço grosso. Como se lhe faltasse qualquer coisa que a substantivasse, lhe concedesse densidade. Pensei ainda mais em guião, em estrutura performativa. Fruto de alguma bulimia, li logo de seguida o «Short Movies» do Gonçalo M. Tavares que, embora objecto de outra estratégia narrativa (deverei escrever sobre ele), assume um registo telegráfico, despido, onde se vê que a “mão do autor” desespera para não se deixar ver (para não estar demasiado presente, aliás) e equilibrar uma objectividade (impossível) algures entre a polaroid, a narrativa etnográfica (pretensamente “distanciada”), etc., de forma a despoletar o “espanto”, o “absurdo”. Creio que um pouco de tudo isto está presente, na pequena narrativa de Tomás Vasques. Não vou contar a fábula, mas desde a primeira à última linha – foi isso que melhor “descobri” em segunda leitura –, a “estranheza” e o “absurdo” produzem-se, não pela substância da narrativa e dos seus jogos, mas pela expectativa que gera em cada passo e que de modo algum se concretiza. O texto joga com os conhecimentos “literários” do leitor médio, com a sua indispensável adesão a um modelo romanesco, com a potencial tensão que resultaria de ele ter de escolher, ou contribuir para, no seu papel de “leitor activo”, um desenvolvimento de cada nó narrativo, de cada solução e, finalmente, para o seu tipo de “final ideal.” É isto que o livro de Tomás Vasques não é – não quer ser. Uma análise mais minuciosa, que não saberei fazer, talvez possa detectar os quase indetectáveis passos em que o autor avança de mais, isto é, cede ao leitor: ou talvez não, e ele tenha antes pretendido contar uma história banal, que todos reconhecemos dos nossos quotidianos mas que, inchados de ficção, nos recusemos a ver. Não é haver aliens que estranhamos, o que estranhamos é não emparceirarmos com eles confortavelmente sentados no sofá quente e macio da nossa “realidade” inventada. A história simples, sem a panóplia redundante de peripécias das “missões impossíveis”, é talvez isto a recusa do nosso autor. Eu precisei desta realidade simples. Precisamos, acredito, desta realidade simples onde cada palavra deve ser julgada em todas as suas consequências, no seu peso específico e no seu jogo relacional. A crueza e a crueldade (ninguém diria…) de Tomás Vasques, perdão, de «Uma História de Amor no Casal da Eira Branca», fazem-nos falta.
Há mais de um ano, fiz este desafio a um amigo: “escreve numa folha A4 o teu percurso, numa manhã igual a tantas outras, desde o quarto de dormir até ao quarto de banho da tua casa – mas sem adjectivações.” “É simples!, é só isso que é escrever?”, respondeu-me imediatamente.
Continuo à espera.
MARAVILHAMENTO
Gosta-se de livros pelos seus “conteúdos”: pois. E o resto, não é livro? Estas e outras dúvidas mais ou menos idiotas desvanecem-se quando temos entre mãos livros editados pela abysmo, do João Paulo Cotrim. Já tinha em casa o “Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações“, “O Branco das Sombras Chinesas” do João Paulo Cotrim/António Cabrita, com ilustrações de João Fazenda; hoje chegaram pelo correio a esta terra “prantada” no meio do Atlântico “As Coisas” da Inês Fonseca Santos, com ilustrações de João Fazenda, e “Uma História de Amor no Casal da Eira Branca” de Tomás Vasques com ilustrações de Susa Monteiro – e pronto, vão as tais dúvidas a ganir alto e forte para longe. Com estes livros nas mãos, o Marx e o Engels não teriam sido tão violentos contra a propriedade privada, acho até que teriam lutado arduamente pela posse destes livros singulares. Eu, pelo menos, compreendo agora melhor o que é desejar uma coisa e depois sentir a sua posse. Enfim, não quero pregar doutrina, não empresto estes livros a ninguém e acabou-se. Mas apetece-me mostrá-los aos amigos, a distância segura das suas salivas e das suas mãos subitamente velozes. A fazer-lhes pirraça, como dizíamos quando éramos garotos – a única fase da nossa vida em que não temos problemas com a posse, “é meu/minha” e acabou-se! Ficam aqui as capas destes dois últimos livros, em versão envergonhada de scanner. Mas, mais logo, na cama, é que vai ser das boas: “olha pra eu” sossegadamente a lê-los, ou talvez devoradamente a.
UM NOME INDIZÍVEL NUM AQUÁRIO VERDE
«Saudar o aparecimento de um novo livro é sempre motivo de alegria. Saudar o aparecimento de um primeiro livro de poesia é uma felicidade imensa. Mas, como festejar As Coisas, que se apresenta como obra de estreia de Inês Fonseca Santos, e cujo lançamento hoje aqui celebramos? Obra de estreia? Mas como, se a própria autora nos diz que houve outra obra antes desta? Tomemos o primeiro dos 32 poemas que constituem este título de Inês. Chama-se “Intróito” e diz assim:
Era um poeta que só escrevia primeiras obras
condenado por ter um dia escrito um poema
feito com palavras conhecidas apenas pelos deuses.
Queria usar agora palavras como: lírios. Ou: Eva.
Considerá-las com ênfase, como lhe tinha ensinado uma amiga
poeta com um amigo poeta. Fechou-se em casa.
Encheu páginas de silêncio.
Passados dias, os deuses devolveram-no
às coisas. Com elas escreveu a segunda obra.
As Coisas é essa segunda obra de Inês Fonseca Santos. O seu corpus poético começa portanto no Opus 2, e não no Opus 1, o que, sendo original, não deixa de ser adequado ao livro que aqui nos dá. Porque, mais do que uma recolha poética, uma primeira obra, com tudo o que isso comporta de terreno ensaiado pé ante pé, feita de impressões diversas e de diversas instâncias do real sobre os quais se exerce o ministério do poeta, As Coisas é um livro – com princípio, meio e fim. E é-o também porque rompe na cena poética portuguesa com um vigor, uma respiração e uma maturidade raras em obra inicial. Há em As Coisas uma espécie de fio narrativo, que é feito de buscas e perdas, de tentativas e erros, de ensaios e aproximações, de fragmentações e de colagens, fio que nos prende ao mistério essencial que qualquer leitor procura num livro: qual é o nome? De quem é o nome? A poesia procura “das erlösende Wort”, a palavra perdida de que fala Wittgenstein. E é nessa ânsia de uma remota palavra primordial que nos reconciliasse no mundo, mais do que com o mundo, que se encontram a busca do poeta e a expectativa do leitor.
Nessa busca, o livro, mais que o poeta, constrói um mundo, um mundo feito de coisas dispersas, entre as quais o único nexo possível é o de um nome indizível – realmente, um nome não-dito -, mundo que se arquitecta em poesia. A poesia é o logos, a palavra capaz de organizar um mundo que se apresenta à memória como uma colecção de disjecta membra, de coisas soltas, arrancadas a um corpo ideal, uno e compreensível: o mundo, tal como é, é obsceno; cabe à poesia torná-lo apresentável. Para já, fiquemos com o programa deste livro: descobrir o nome que dá um sentido às coisas, a todas as coisas. É claro que, neste mundo povoado de coisas e de reminiscências de coisas, e da recordação de um nome perdido, há pontos de amarração, coisas que são mais coisas que as outras: do meu ponto de vista (e o leitor é, à sua maneira, um re-criador do livro que o poeta escreveu), o aquário verde, figura recorrente neste livro tão sedutor, é o que pontua a deriva poética da autora (arrisco-me a dizer que é a melhor imagem a cores deste livro, elegantemente tintado em tons de sépia). O aquário verde é silenciosa testemunha e sinal da persistente memória de um espaço, de uma casa, de um mundo. Lá ao alto, no cimo da estante, o aquário verde acolhe e alimenta os “peixes-palavras”, assiste e resiste à passagem do tempo e ao esquecimento das coisas em nós. Ele é que permanece, num território poético em que todas as coisas se movem e quebram, se colam e voltam a partir, porque o nome do desejo não encontra a expressão da sua mágoa. Porque o nome não encontra a expressão. E, no entanto, o poeta chama por ele, ousa dizê-lo como nome, ousa chamá-lo como coisa:
Havia várias formas de chamar-te.
Chamar-te não era apenas dizer o teu nome.
Muito menos fazer-te virar a cabeça na direcção da casa.
Era conhecer-te o rosto – dedicado, disponível, raro.
As coisas livres ficaram escritas no chão.
Dizer o nome seria iluminar toda a cena, e eternamente. Dizer o nome seria a glória da poesia e a sua condenação, o seu cumprimento e a sua exaustão, porque “as coisas/são feitas de vidro./Partem-se quando digo em voz alta/o teu nome. Nome de todas as coisas.” Este curtíssimo poema, inserido na parte inicial do livro, é uma das mais felizes expressões que aqui se encontram para dizer esse êxtase e agonia de toda a expressão poética. Se fosse possível dizer o nome que é em si todas as coisas, estas estariam condenadas a desaparecer. Mas o poema não é elegíaco, é o enunciado de uma verdade poética que nos devia levar sempre a seguir pelo caminho que já Novalis apontava: “quanto mais poético, mais verdadeiro”. Chamo agora a atenção para o facto de que, nesse curto poema, aquilo que vos li como primeiro verso é, realmente, o título do poema. E essa particularidade deste livro – a de os títulos não serem circunstanciais ou descritivos, mas constituírem em si uma parte do discurso que se integra no todo do poema – é o que torna este poema tão paradigmático de tudo o que Inês aqui escreve. É uma arte poética que se enuncia, com a brevidade de uma norma que será seguida sem falhas ao longo do livro: “as coisas/são feitas de vidro./Partem-se quando digo em voz alta/o teu nome. Nome de todas as coisas.” O poema, o longo poema que este livro é, declina todas as possibilidades desta ruína das coisas e da exaltação do nome desejado. E o incessante labor de reconstituir as coisas, à espera de poder voltar a dizer o nome que as estilhaça: “com sílabas/ de palavras caídas em desuso/ o teu nome volta a formar-se.” Tornam-se então indistintas as coisas e o nome que lhes dá sentido, a poesia resolve-se num movimento de construção/desconstrução, que é a dialéctica que faz o poema avançar, e que arquitecta a narrativa. Coisas recuperadas, irreparáveis, diferentes, semelhantes, materiais, sobreviventes. Coisas partidas, insignificantes, frágeis e difíceis. E as “mais difíceis”:
As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.
Pouco se pensava no tempo. Nenhuma consciência dele, menos ainda
do modo de contá-lo. Não pela falta de relógio
(o encarnado mostrava os números por debaixo de um arco-íris de cinco cores).
Era a falta de: as palavras. Pareciam-se com
o teu nome. O jogo – a guerra de procurá-las,
quanto mais dizê-las, fazia-nos de tempo (na pele, nos ossos).
Invencíveis, as coisas mais difíceis. Sobretudo
nos dias de sol:
com o som audível dos peixes no aquário verde,
a estante prestes a cair.
Dentro da casa, instalava-se a tempestade.
Por casualidade, cruzei a leitura do livro da Inês com a de um romance do grande escritor espanhol Javier Marías. Chama-se Todas as almas. E aí, como que seguindo uma dinâmica de aproximações que se impõe quando menos a esperamos, encontrei este parágrafo: “Não posso dar-me ao luxo de dispor de todo o meu tempo e não ter em quem pensar, porque, se o faço, se não penso em alguém mas apenas em coisas, se não vivo a minha estada e a minha vida em conflito com alguém ou na sua previsão ou na sua antecipação, acabarei por não pensar em nada, desinteressado de tudo o que me rodeia e também de tudo o que possa nascer de mim.” O escritor precisa de um nome que o faça pensar, que o arranque à ditadura das coisas e o devolva à condição de ser-em-si-por-outro. Que nome é esse é o que a poesia – a de Inês como a de qualquer outro poeta – não diz. Como nota lapidarmente Manuel António Pina, “a poesia, se calhar, é uma porta que nos permite reconhecer que não há porta nenhuma”.
Vamos então ao último poema, “As coisas inquebráveis”: “Não me lembro de outras/que não as palavras”, diz a poeta. Permita-me que acrescente outra coisa, igualmente inquebrável, igualmente inútil, igualmente gloriosa: a vontade de escrever. Mesmo que dela apenas brote um nome indizível num aquário verde. »
António Mega Ferreira, Lisboa, 13 de Janeiro de 2012 [apresentação de AS COISAS, de Inês Fonseca Santos, Lisboa, Abysmo, 2012 ]
[com um obrigado ao João Paulo Cotrim)
As Coisas «São feitas de vidro…»
O lançamento do livro da Inês é esta Sexta-Feira 13 de Janeiro, às 22 horas, no Lux-Frágil.
AS COISAS DA INÊS FONSECA SANTOS
Lançamento do livro da Inês Fonseca Santos, com ilustrações de João Fazenda, adição abysmo, no Lux Frágil, dia 13 de Janeiro de 2012, pelas 22 horas. Apresentação de António Mega Ferreira, leitura de poemas por Filipa Leal e Pedro Lamares.
UMA HISTÓRIA DE AMOR
A novíssima editora abysmo, do João Paulo Cotrim, acaba de publicar mais um livro, o terceiro – depois de Sérgio Godinho e as 40 ilustrações e de O Branco das Sombras Chinesas, do mesmo Cotrim e de António Cabrita. Chama-se este Uma História de Amor no Casal da Eira Branca, é de Tomás Vasques, tem Ilustrações de Susa Monteiro, Design e logótipo convidado de Luís Mendonça. Ainda não vi o livro – recebê-lo-ei por ser “amygo do abysmo” (vejam lá no site o que isto significa). Parabéns, amigo Cotrim!
O resumo que está lá no site reza assim: «Durante mais de um ano, percorrido a uma velocidade impulsiva, em que cada dia esvoaça, vestido de ternura, na passagem de cada uma das horas, sucederam-se as juras de amor e as cenas de ciúme, como convém quando a brancura diáfana do encanto nos enleia.E muitos prazeres, no refúgio de um hotel ou em fins-de-semana inventados à medida dos desejos, porque não há enamoramentos, daqueles em que a ausência provoca dores no estômago e outros males a que os médicos não chegam, sem que os corpos se acariciem e se fundam.
E, todos os dias, um a um, se foram construindo de mil cumplicidades, próprias de quem vive uma grande história de paixão e amor. Adormeceram algumas noites a ouvir o murmurejar das ondas ao desfazerem-se em espuma nos areais da Nazaré; vaguearam abraçados pelas ruas de Sevilha; ouviram jazz, pela noite dentro, em bares de Madrid; descobriram juntos as ruínas romanas de Mérida; e namoraram em tantos outros sítios que ficassem à distância de um fim-de-semana.»
Informação complementar:
Composto em caracteres Leitura Sans, DSTYPE
Impresso a 2/2 cores sobre papel Munken Pure 170 g.
Capa impressa a 2/0 cores em cartolina Trucard uma face 300 g.
Contra-colada em cartão de 2,25 mm, com impressão a 1 cor em serigrafia.
Acabamento cosido e colado.
Formato 16×16 cm
9,00 €