Posts tagged ‘linguagem’

16/05/2012

ESPELHOS, LABIRINTOS E ESPADAS

por cam

«A 24 de Junho de 1969, numa casa de Bue­nos Aires, um escri­tor cego acaba de redi­gir o pró­logo para o seu quinto livro de ver­sos. Eram, com toda a pro­ba­bi­li­dade, as 4 horas da tarde. Tinham-lhe pedido que, nesse pró­logo *, a ante­ce­der um livro de “espe­lhos, labi­rin­tos e espa­das” fizesse uma decla­ra­ção sobre a sua esté­tica. Bor­ges, o escri­tor cego, decla­rou não ter nenhuma, mas atreveu-se a con­fes­sar as suas astúcias. Resumo esses oito hábi­tos humil­des que rejei­tam a arro­gân­cia bar­roca dos jovens.

1.Evi­tar os sinó­ni­mos que têm a des­van­ta­gem de suge­rir dife­ren­ças imaginárias.

2.Evi­tar his­pa­nis­mos, argen­ti­nis­mos, arcaís­mos e neologismos.

3.Pre­fe­rir as as pala­vras habi­tu­ais às pala­vras assombrosas.

4.Inter­ca­lar num relato des­cri­ções cir­cuns­tan­ci­ais que o lei­tor actual exige.

5.Simu­lar peque­nas incer­te­zas já que se a rea­li­dade é pre­cisa, a memó­ria não o é.

6.Nar­rar os fac­tos como se não fosse capaz de os compreender.

7.Recor­dar que as nor­mas ante­ri­o­res não são obrigações.

8.Recor­dar que o tempo se encar­re­gará de as abolir. Lê-se e só ape­tece envelhecer.

* Pg. 975 da minha velhi­nha edi­ção da Emecé Edi­to­res, Bue­nos Aires, 1974»

As astúcias de Borges, por Manuel S. Fonseca, retirado daqui, com a devida vénia [só a foto é da minha responsabilidade].

01/03/2012

A GUERRA

por cam

«É fácil, e vulgar, que se induza no homem normal o estado de homicídio: basta mandá-lo para a guerra. O bêbado procede como um louco, e o soldado procede como um assassino. (…) Porque mata o soldado? Por uma imposição de um impulso externo que lhe oblitera por completo todas as suas noções normais de respeito pela vida e pela lei; esse impulso externo pode ser a Pátria, o dever, ou a simples submissão a uma convenção, mas o facto é que é como o álcool que converteu o outro em louco, uma coisa vinda de fora. A guerra é um estado de loucura colectiva, mas, nos seus resultados sobre o indivíduo, difere da bebedeira: a bebedeira dissolve-o, a guerra torna-o anormalmente lúcido, por uma abolição das inibições morais. O soldado é um possesso: funciona nele, e através dele, uma personalidade diferente, sem lei nem moral. O soldado é um possesso ou um intoxicado com uma daquelas drogas que dão uma clareza factícia ao espírito, uma lucidez que não deve haver perante a profusão da realidade. (…) Um respeito emotivo pela vida, eis o que evita que se mate. Tem-no o budismo; tê-lo-ia o cristão, se efectivamente o fosse. (…) Quem não é capaz de matar um homem também não é capaz de matar um frango. E, conversamente, quem é capaz de matar um frango é capaz de matar um homem; o caso é fornecerem-lhe as circunstâncias externas que lhe tornem frangos os outros homens, ou determinado homem – isto é, as circunstâncias externas em que se obnubile, não a noção da existência (essa está obnubilada em quem pode matar), mas a noção da identidade de outra vida humana como a própria (que é o que está obnubilado em quem efectivamente mata).»

[Fernando Pessoa, Quaresma, Decifrador, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, edição de Ana Maria Freitas: pp. 93-98]

08/01/2012

NEMÉSIO vs MAGALHÃES #02

por cam

Joaquim Manuel Magalhães

Cerca de 18 anos depois da primeira incursão na obra de Nemésio, Joaquim Manuel Magalhães (JMM) volta em Rima Pobre. Poesia Portuguesa de Agora (Presença, 1999) ao autor de Festa Redonda.

No texto em referência (pp.31-40), Magalhães sugere “uma leitura poética de Vitorino Nemésio enquanto lugar verbal onde surgem processos que, embora por vias distintas, acabam por ser semelháveis a posições processuais que poetas mais novos, pela altura da sua morte [1978], vinham a encontrar como terreno de vontade e de possibilidade.” (p.32) Convém dizer, antes de se perceber como Magalhães define esses pontos semelháveis, que ele considera que a “qualidade da poesia portuguesa recente assenta na recusa de uma dependência intergeracionalista.” (p.31) E diz “que não será prudente procurar encontrar continuidades e influências onde elas não existem. Porquanto apenas existe a justaposição que certas poéticas entre si fomentam, depois de terem demandado a originalidade criativa própria.” (pp.31-32)

Vitorino Nemésio

O breve apreço que Joaquim Manuel Magalhães faz da obra de Nemésio ancora-se na sua eleição de Festa Redonda e Andamento Holandês como “as suas duas obras culminantes” (p.33). Magalhães anota hipóteses de ler as “linhas de tradicionalidade” em Nemésio, entendida tradicionalidade como “um processo de sedimentação do distinto”, tanto no semelhante como nos “radicais actos de rompimento” (p-32). Assim, pode enumerar JMM de Nemésio a “tradição oral novilatina”, a “poesia em francês na esteira de Gautier ou Verlaine”, de “cantadores tradicionais portugueses” e o “simbolismo de Nobre”. (id.) Em Nemésio considera JMM marcas distintivas como o “enlouquecimento processual (em Festa Redonda) só equiparável a Cesariny – modo radical do uso da métrica, sabotada em ambos pela “manutenção de uma rima, de uma toada, de um espelhamento qualquer que atira ao leitor um surpreendente estilhaço”, e dá um exemplo

Deixa à ida uma pluma

Que eu distraído escolha

Como na onda uma

Rolha.

(p.33)

Nuno Júdice

Entrando na aproximação a Júdice, Magalhães evoca raízes e pontes comuns – convém, antes, assinalar que Nuno Júdice (Mexilhoeira Grande, 1949-) publica poesia desde 1971 (A Noção de Poema) e em 1999 já contava com 22 títulos publicados (até 1978, ano do desaparecimento de Nemésio, publicara 7 obras – apenas para citar nomes: Antero, Gomes Leal, Eugénio de Castro, Junqueiro, Pessanha ou Soares dos Passos, e as fontes italiana e francesa: Leopardi, Baudelaire, Mallarmé, Laforgue e Lautrèamont, até chegar a Valéry. E ainda Hölderlin, que considera também associável à poética de ambos. Magalhães gosta de destacar, em termos de processos, a “violência formal que constitui a extremização do uso da quadra (…) para além da demanda popular” (fora do popular, Nemésio percebeu a radicalidade de Eliot e Pound e a “destruição dos preconceitos versilibristas herdados de Whitman por simbolistas e por modernistas” (p.35).

De volta a Júdice, outro campo de cruzamento com Nemésio, o uso do soneto; assinala três vectores no século XX português: o rompimento com a processualidade usual desta forma; variações que fundem a forma original com modelos e intuitos prosódicos mais populares; uso retradicionalizador da forma renascentista. Fora “desta dimensão formal específica do soneto, ambos os poetas se afastam, no que diz respeito ao uso da prosódia” (p.36).

Dentro das diferenças, o que muito aproxima estes e outros poetas (Manuel Gusmão, por exemplo), é a “total adesão ao poema como consciência da sua escrita” (id.) “A partir de 1959, a presença do estético como referencialidade interna do poema surge em vários poemas de Nemésio.” E as referências culturais não deixam de produzir “um seguro efeito de estranhamento” que é mesmo conseguido “dentro de situações verbais típicas da sua poesia desde o primeiro livro, precisamente nisso que diz respeito ao uso da quadra e da redondilha” (p.37). Esta “estúrdia processual” só Cesariny consegue equivaler.

[continua]

23/12/2011

CHEGOU O CARTEIRO

por cam

No supermercado, Cristo verga-se ao peso das compras e da hipocrisia. Aguenta, Homem, está quase a acabar, a bem dizer só terás de suportar mais um empanturramento e mais uma homília, depois voltam todos a pecar gloriosamente – para usufruto deles, agora é apenas em Tua Glória.

Chegou o carteiro – com uma espécie de salvação: o último livro do meu amigo António Cabrita, Respiro, edições Língua Morta, deste final de ano. Que repiquem sinos para os lados de Maputo.

Respiro, ensaio de António Cabrita, nas edições Língua Morta, Novembro de 2011

25/08/2011

PREDAÇÃO

por cam

Ler os outros, as suas escritas, é um modo de me apoderar do que me falta neles. O processo é predatório na sua essência. Acrescento ao meu corpo de possibilidades as partes dos outros que desejo, e no mesmo passo regenero as idênticas que em mim gosto, nos seus detalhes.

Neste processo, para evitar excessos em mim, desfaço-me de algumas partes, umas declaradamente estranhas – ou assim as sinto – e outras reutilizáveis. Se isto aproveitar aos outros, acrescentando-os, é mero acaso, e apenas assim assemelhado a qualquer lance altruísta.

Um jogo em que a cumplicidade nem sempre é voluntária nem recíproca, luta encarniçada que sai de mim para mim, este acontecimento ocasional de escrever sobre os outros.

Açougue de palavras, pedaços de carne roubados e atirados às feras.

09/04/2011

«LOSANGO HEXAGONAL»

por cam

Leio O Ensino do Português, de Maria do Carmo Vieira e fico aterrado. Leiam, por favor, a edição, de 2010, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, sabiamente dirigida por António Barreto. E leiam também, por favor, o indignado artigo de Francisco José Viegas, sobre as questões suscitadas pelo conteúdo do livro, na revista Ler de Novembro do ano passado. Leiam, por favor – embora só possa fazer este apelo a quem aprendeu português pela literatura portuguesa e pela gramática, e não a quem “aprendeu” por TLEBS & quejandos e por uns sucedâneos de literatura, como, por exemplo, “atestados médicos”, “instruções de electrodomésticos”, “horóscopos” & etc…

Em Portugal, instalou-se (para durar? ai…) a cultura do facilitismo – a “malta” morre, meu, ‘bora gozar, já! Os exemplos vêm do alto. José Sócrates, Armando Vara e tantos outros, pediram a uns amigalhaços das “universidades” que lhes “facilitassem” uns cursos superiores, é chato não poder ser tratado por doutor-engenheiro-arquitecto-Professor. E lá estão eles.

No Ministério da “Educação”, mandam imperialmente uns senhores e umas senhoras da pedagogia e da linguística, que são os culpados – “culpados”, e não “responsáveis” – por este triste e grave estado de coisas. Na universidade onde fui professor, lutei contra situações que identifiquei como o resultado de mais de duas décadas de destruição sistemática da capacidade crítica de jovens, da ditadura do fácil e do que não é “chato”. Tive colegas dos departamentos de psicologia e de pedagogia que teimavam em aumentar a carga horária das disciplinas de pedagogia nos cursos artísticos, e – o pacote integra outras “maldades” – a “ludicidade” na transmissão do saber. Colegas de teatro, por exemplo, clamavam contra a demasiada “teoria”, os alunos “não aguentavam”, berravam eles, além de que era preciso “prepará-los para o mercado de trabalho”. “Ó colega”, disse eu, em reunião de Conselho de Artes (!), “explica lá como é que se faz, por exemplo, com a História do Teatro Português?”. “É muito simples”, retorquiu o colega, “preparamos umas cenas com os alunos e fazemos um percurso rápido desde as origens aos nossos dias, coisa aí para uma hora, e ficamos assim com o resto do ano livre para as disciplinas práticas.” Alguns de nós embasbacaram… Era impossível explicar a professores, um deles professor doutor, a cor da lama onde intelectualmente chafurdavam. Perante o nosso silêncio, exclamou, vitorioso, o mais novo: “Estão a ver como é simples?” Porreiro, pá…

“Verbos incoativos são os verbos derivados intransitivos, parafraseáveis pela expressão «tornar-se ADJ/N» ou «N» a forma derivante.” Isto, é: verbos intransitivos, antigamente… O Ministério da “Educação”, por um lado, “simplex”, por outro, “complex”: é “chato”, não se lê, não se estuda; a gramática, empestada de linguística, evita que se perceba o funcionamento da língua. O que dá coisas como estas, de alunos universitários: “No dia em que marca-mos”, “tenho hoje grassas à minha mulher”, “facha etária”, “não está assecível”, e, como variantes do losango, “losângulo, losângolo, losangulo, losangolo”; ou, no âmbito da geometria, um aluno que “descobriu” um “losango hexagonal”…

E não se podem incriminar os culpados disto?

27/03/2011

A BOCA NA CINZA

por cam

«Nós encobrimos o que é feio, o que é dissonante, o que é áspero – andamos sempre a limpar o mundo de tudo isso. Uns de uma maneira menos violenta, outros violentamente – foi isso que fez Hitler, limpou o mundo. Quando ouço fazer a apologia da beleza e da saúde, fico muito perturbado. Porque é a apologia da “limpeza”, e isso é terrífico. A apologia do poema bonito, a apologia da frase harmoniosa… estremeço. No fundo, atrás disso vêm todas as outras coisas, e vem também a violência. O terrorismo da beleza.
Quase todas as pessoas que praticam isso fazem a apologia disso, e estão sempre a confrontar o que os outros fazem, ou escrevem, com isso, ou o que os outros são com o padrão colectivo. Quem não faz isso é afastado. É segregado, como os anões são segregados, como os surdos, como os mudos são segregados. E o que fica é um mundo que se quer sem mácula. Eu tenho horror à ausência de mácula. (…) A escrita, para mim, não é uma forma de atenuar, é um gesto, e eu queria que cada palavra fosse um gesto e não mais do que um gesto, com a violência do gesto, a rudeza. (…) O outro tipo de violência é quando a própria palavra é a violência do discurso, a palavra não diz a violência: e é ela própria violência. Aí, as pessoas afastam-se, repugnadas.»

(Rui Nunes em entrevista a Tereza Coelho no suplemento Mil Folhas do Público, em 5 de Julho de 2003)

24/03/2011

TRAÇOS DENSOS SULCAM O PAPEL…

por cam

Durante anos e anos li as palavras que Carlos de Oliveira juntou e burilou em Finisterra – Paisagem e Povoamento (Lisboa, Sá da Costa, 1978); volto sempre a elas porque são primeiras, fundadoras. Como estas:

“Traços densos sulcam o papel, tão unidos que formam uma pasta de espessura sem falhas. Cristais microscópicos de lápis faíscam, dão à superfície negra o fulgor de certos minérios. Corpos compactos, do mesmo tamanho (refiro-me aos camponeses). Gestos dum ritual perto do fim: braços que pendem, para equilibrar a marcha, pernas flectidas torneando os rochedos, dificilmente, a caminho da água.” [17]
“Às vezes limpo o estojo de pirogravura: mas, no metal tão estalado, a ferrugem reaparece em poucos dias e progride pelas ranhuras como o desenho duma raiz. Além disso, rasgou-se o fole de borracha: só respira cobrindo-lhe o rasgão com a ponta do dedo (se falta ar ao estilete incandescente, o fogo morre por si mesmo e o trabalho é impossível). Preocupações aliás inúteis: não me sirvo do estojo há muito (desisti de perseguir a realidade ou, melhor, cansei-me).” [105]

Este livro de Carlos de Oliveira poderia ter como epígrafe este excerto de Simone de Beauvoir: “Os factos não determinam a sua expressão, não ditam nada: o que os relata descobre o que tem a dizer, pelo acto de dizer.” [Balanço Final, Lisboa, Bertrand, 87-88].

14/03/2011

O INCRÍVEL PIERRE

por cam
Pierre Rivière, ed. port.

Pierre Rivière, ed. port.

 

Pierre Rivière, ed. fr.

Pierre Rivière, o filme de Allio

Leio Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma Mère, ma Soeur et mon Frère… un cas de parricide au XIXème siècle, apresentado por Michel Foucault, na versão portuguesa de Maria Filomena Duarte (edições Terramar, 1997). Quando conheci a edição francesa (de 1973), comecei a alimentar uma ideia de escrever um texto teatral, projecto que fui adiando, em especial pela dificuldade do texto francês. O livro inclui várias peças do processo judicial, testemunhos, etc, mas sobretudo o incrível “memorial” do jovem Pierre, de 20 anos, onde confessa os crimes (de uma extrema violência) mas em especial as suas motivações – em síntese, os maus tratos que segundo ele a mãe infligiu ao pai durante quase duas dezenas de anos, e uma auto-análise do seu próprio comportamento. Talvez seja desta que sai teatro… (o pior – ou melhor, quem sabe – é se isto se mistura com o século anterior e Moçambique…).

Nunca vi o filme de René Allio (1976), tenho de o procurar.

03/03/2011

PALAVRAS SOBRADAS

por cam

Uma das verdades dos nossos dias, que poucos contestarão, creio, é a aceleração do tempo. “O tempo já não sobra como dantes!” Pois não. E o pior não é isso; em cada parcela do pouco tempo posto à disposição de cada um de nós temos de cumprir pelo menos o dobro do que antes fazíamos no mesmo tempo contado de relógio: temos mais máquinas, mais sofisticação tecnológica, temos mais habilidade e, sobretudo, temos o que não gostamos: sempre alguém a exigir-nos pressa e até a colocar à nossa disposição os meios adequados a tal, desde a milagrosa máquina de cozinha doméstica até às mais velozes vias de comunicação universal virtuais. Fazer rápido, light, micro, jovem, superficial – mais depressa mais depressa que o tempo urge! Para quê? – perguntarão, algo distraídos, os mais ingénuos; para nos fazer sobrar tempo para o prazer ou para o mais requintado ócio? Não senhor, não: para nos fazer sobrar mais tempo a fornecer à máquina devoradora do capitalismo – liberal e selvagem.

Nos meus primeiros dias de “ilhéu emprestado”, conheci aqui na ilha do Pico um senhor que nunca mais esquecerei. Tem um nome, tem, já lá iremos, não tenham pressa, primeiro, a história. Foi para os lados da Ponta da Ilha. Entrei numa taberna, acompanhado da Sara e de um casal de amigos, estes e eu absolutamente desconhecidos para o homem que nos olhava com a precisão lenta da sabedoria. Os seus licores e aguardentes já tinham feito crescer águas nas nossas bocas mesmo antes de lhes sentirmos o cheiro e o sabor e por isso pedimos, logo, “um cálice daquele, como se chama?” Entre este pedido desajeitado e o nome pronunciado decorreu um tempo incomensurável (não apenas porque não se poderia medir mas porque foi um tempo de outra natureza). O nosso anfitrião olhou-nos com os seus olhos claros, lavou um cálice bojudo na água corrente, deixou escorrer a água em demasia e depois encheu-o de uma bebida rosada, ardente. Pousou o cálice no balcão. “Bebam!” Bebeu o meu amigo, depois a sua esposa e depois eu. Para a Sara fez questão de ser ele a dar-lhe o cálice à mão. O sorriso inicial nunca ele o desfez. Sobraram tantas palavras naquele tempo fora do tempo! Mentira: trocámos umas palavras de ocasião, porque o essencial já tinha sido dito.

Sobraram palavras, é verdade também, para cada um de nós poder continuar calmamente a não ter pressa de as gastar todas de uma só vez – ou a reduzi-las a uma espécie de linguagem primeva e atávica, monossilábica e unidireccional. Sobraram palavras para não nos esquecermos que uma palavra gritada não vale necessariamente mais que uma palavra adornada pelo silêncio. Sobraram palavras para nelas atentarmos bem e percebermos o valor que têm para se pensar – e nunca para agredir.

Pensar calmamente. Os filósofos gregos (e outros) tomaram o seu tempo com sageza. Talvez, coitados, nunca tenham enxergado que as suas palavras feitas pensamentos chegariam a um tempo em que a palavra e o pensamento são desprezados, com pouca ou nenhuma cotação nas Bolsas. A Justiça interessa a quem? A quem a ministra ou a quem ela se aplica? Resposta fácil e imediata: não sei. Platão pôs Sócrates (o do século V a.C. e que também não sabia de engenharia) a falar com quem não estava de acordo com ele e, sobre este e outros assuntos, escreveu, pelo menos, uma obra de algumas centenas de páginas. E a nossa opção agora, é, creio: darmo-nos tempo para ler calmamente essas e outras muitas centenas de páginas e ficarmos um pouquinho mais apetrechados para lidar com as asperezas e truques nojentos do injusto mundo em que todos vivemos; ou: procuramos já já na wikipedia uma definição rápida de justiça segundo Platão na sua República e ficamos…; ou:…

Se me permitirem, ficarei então por aqui, por estas páginas… ah… quase me esquecia!: muito obrigado, senhor Manel Alves, pela divinal aguardente de amora, que Deus o tenha para sempre no seu seio acolhedor!

17/04/2010

O OCIDENTE E O EXOTISMO

por cam

É sabido que continua por aí vaga dos romances (e afins) ditos de autores “lusófonos”; acresce, em lusófonos de Portugal (aqui nados, sem sempre criados) a escrita de romances de “temáticas africanas”. Ou o mundo “exótico” de África, Ásia, América Latina. Renitente, aceito que nem sempre de forma sensata, a modismos, em especial a explosões de génios, vou por outras leituras: Os Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinovski; Vidas Caídas – Diário de um Repórter na Amazónia, de José Amaro Dionísio; Ébano, de Ryszard Kapuscinski; Miroir de l’Afrique, de Michel Leiris; O Coração das Trevas, de Joseph Conrad; Equador, de Henri Michaux, Expedição ao Amazonas, de Alain Gheerbrant; Os Filhos de Sanchez, de Oscar Lewis; Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss; Vou lá Visitar Pastores, de Ruy Duarte de Carvalho – entre tantas, tantas outras.

13/04/2010

A DIFICULDADE DO ROMANCE

por cam

Há três dias revi, como se fosse a primeira vez, o filme (em vídeo) O Estado das Coisas, de Wim Wenders (1982). Numa altura em que tenho alguma dificuldade em digerir romances que por aí vão sendo badalados, o filme de Wenders encaixou na perfeição. A reflexão sobre a própria linguagem do cinema – o seu fascínio, mas igualmente os seus limites e possibilidades, narrativas e outras –, a inclusão reflexiva, a inovação estrutural, são alguns dos problemas (ainda) numa certa procura da escrita romanesca (se quisermos continuar a dizer que tal é possível) e do cinema. Eu aposto nisso: a tradicional boa história – como Borges dizia do romance policial – entrelaçada inteligentemente numa hibridação que mantenha intactas as condições essenciais de comunicabilidade. Nabokov falou de obscenidade quando o romance não tem nada para acrescentar ao mundo. Perfilho desta ideia, sabendo que ela pode não passar de mais um aforismo inútil, decorativo.

São as dificuldades que vou sentindo na escrita dos meus projectos romanescos. Acresce que trago da poesia e do teatro (e dos contos curtos, que tenho experimentado nos últimos cinco anos) outras dificuldades – mas também outras capacidades de enriquecimento e inovação. A ver vamos.

O estado das coisas, de Wim Wenders (1982)