Hipopótamos: não ceder à tentação de desviar o olhar
DEDICATÓRIA
I shall never get you put together entirely,
Pieced, glued, and properly jointed.
Sylvia Plath, The Colossus
Escovar bem as palavras, libertá-las do sarro do uso.
Devolver às palavras a sua natureza de pedra, a sua intensidade, a sua natureza da corrente de rio a fluir de si para o ainda-por-conhecer.
O espanto e o maravilhamento refugiados sob as nossas peles.
No princípio era as palavras “lírios”, ou “Eva”. Ou outras. Depois o remanso do silêncio. E só depois as palavras. “Coisas”. Não em lugar de.
Sobrevieram tempestades de lixo, destemperos divinos. Despedaçaram as palavras-pedra, as palavras-em-movimento.
Miríades de estilhaços para recompor um nome ainda desconhecido.
Repetições. O silêncio não é falha de palavras, é o prenhe de tudo, mas não sabemos como.
“Demasiadas palavras armadas em metáforas. “Vazios” – precisar de “uma pele capaz de os alojar.”
Um corpo é um pedaço de tempo, irrecuperável.
«Flectindo o dorso estendo a mão cega até à palavra que te procura (…) / que mistérios ocultará essa palavra tão longe e tão perto desta mão? / (ou é apenas o lado errado da noite?).»
As coisas não envelhecem, morrem de um golpe só. A morte é passar o tempo a tentar limpá-las com restos moribundos, as palavras.
As coisas ferem. É da sua natureza. E depois riem.
O tempo implode. Sonhamos com outra dimensão espaço-tempo.
Os nomes são remendos. Ou a derradeira hipótese de colar os fragmentos.
Pode haver um Nome, mesmo assim. Mas terá de ser Coisa.
Com a memória ajustamos medos e renovamos segredos. Coisas caladas.
O coração é um imenso buraco aberto no peito de onde olhamos o que não foi. “As coisas conhecidas são pedras e poemas. E o teu nome / sempre infiltrado nos versos.” «a tua pedra negra regressa à minha mão fechada / e ilumina como um sol a minha noite em claro».
«Longe, junto a um rio, há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.»
Um nome branco bordado em branco a apagar os pecados. “papel químico encostado ao tempo.”
As palavras, «sucessivas camadas de palavras por dizer», ardem sob o teu nome, sempre o teu nome. Por dizer.
As palavras nunca dão “resultado certo”.
“As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.” Para o contar é preciso sacudir «a escama estéril das palavras».
Morro todos os dias com uma recordação na pele e “o som atenuado de uma canção.”
Nas coisas não se vaza memória, o escorrimento obstinado do tempo.
Os nomes são repetições, sujeitos a defeito de fabrico.
Os espelhos reverberam ausências. O excesso de cristalino elide a memória.
Conhecer um rosto sem o atrito de um nome.
Sob a pele um mapa de nomes.
Há uma infância onde os nomes respeitam as coisas. Depois vem a memória.
Chegar às coisas, torná-las inanimadas, é isto a morte.
Também a morte tem uma arqueologia.
As coisas são o que são, resistentes à desordem do universo.
Por ti, «esconde a palavra-talismã»
Palavras pagam-se com palavras.
Dedicatória.
{ lendo As Coisas, da Inês Fonseca Santos, edição abysmo, Janeiro de 2012 }
A REALIDADE TAL QUAL ELA NÃO É
ou
SUA EXCELÊNCIA, O LEITOR
Retomo o que escrevi em post anterior (“artigo”, lhe chama o WordPress, quanto a mim mais apropriadamente): “Gosta-se de livros pelos seus “conteúdos”: pois. E o “resto, não é livro? Estas e outras dúvidas mais ou menos idiotas desvanecem-se quando temos entre mãos livros editados pela abysmo”, como “(…) «Uma História de Amor no Casal da Eira Branca», de Tomás Vasques, com ilustrações de Susa Monteiro – e pronto, vão as tais dúvidas a ganir alto e forte para longe.” O texto de Tomás Vasques, as ilustrações de Sua Monteiro, o design do livro da responsabilidade de Luís Mendonça casam-se na perfeição. Todos sabemos que, por definição, não há casamentos felizes, e que neste caso, além disso, o casamento se assemelha a uma relação com três vértices, o que na língua dos valentes gauleses se conhece como ménage à trois. Felizmente que os livros não se colhem na realidade como as margaridas e que a sua natureza é outra, digamos, mais apetecível para matutinos despertares de sonho – ou para noites pesadas de chumbo.
Perfeições à parte, já perceberam que o livro me motiva. Como ando ainda a aprender a falar de outras artes que não a da escrita, vou-me só a esta, onde escorrego menos.
Este «Uma História de Amor…» é o primeiro texto ficcional de Tomás Vasques que leio – e a ausência de referências é sempre, para mim, um desafio suplementar, o da “leitura sem rede.” De uma primeira leitura do curto texto – 30 páginas, incluindo ilustrações – ficou-me a impressão de estar perante um guião de um romance, uma intriga minimal para aguentar as figuras e situações desenhadas a traço grosso. Como se lhe faltasse qualquer coisa que a substantivasse, lhe concedesse densidade. Pensei ainda mais em guião, em estrutura performativa. Fruto de alguma bulimia, li logo de seguida o «Short Movies» do Gonçalo M. Tavares que, embora objecto de outra estratégia narrativa (deverei escrever sobre ele), assume um registo telegráfico, despido, onde se vê que a “mão do autor” desespera para não se deixar ver (para não estar demasiado presente, aliás) e equilibrar uma objectividade (impossível) algures entre a polaroid, a narrativa etnográfica (pretensamente “distanciada”), etc., de forma a despoletar o “espanto”, o “absurdo”. Creio que um pouco de tudo isto está presente, na pequena narrativa de Tomás Vasques. Não vou contar a fábula, mas desde a primeira à última linha – foi isso que melhor “descobri” em segunda leitura –, a “estranheza” e o “absurdo” produzem-se, não pela substância da narrativa e dos seus jogos, mas pela expectativa que gera em cada passo e que de modo algum se concretiza. O texto joga com os conhecimentos “literários” do leitor médio, com a sua indispensável adesão a um modelo romanesco, com a potencial tensão que resultaria de ele ter de escolher, ou contribuir para, no seu papel de “leitor activo”, um desenvolvimento de cada nó narrativo, de cada solução e, finalmente, para o seu tipo de “final ideal.” É isto que o livro de Tomás Vasques não é – não quer ser. Uma análise mais minuciosa, que não saberei fazer, talvez possa detectar os quase indetectáveis passos em que o autor avança de mais, isto é, cede ao leitor: ou talvez não, e ele tenha antes pretendido contar uma história banal, que todos reconhecemos dos nossos quotidianos mas que, inchados de ficção, nos recusemos a ver. Não é haver aliens que estranhamos, o que estranhamos é não emparceirarmos com eles confortavelmente sentados no sofá quente e macio da nossa “realidade” inventada. A história simples, sem a panóplia redundante de peripécias das “missões impossíveis”, é talvez isto a recusa do nosso autor. Eu precisei desta realidade simples. Precisamos, acredito, desta realidade simples onde cada palavra deve ser julgada em todas as suas consequências, no seu peso específico e no seu jogo relacional. A crueza e a crueldade (ninguém diria…) de Tomás Vasques, perdão, de «Uma História de Amor no Casal da Eira Branca», fazem-nos falta.
Há mais de um ano, fiz este desafio a um amigo: “escreve numa folha A4 o teu percurso, numa manhã igual a tantas outras, desde o quarto de dormir até ao quarto de banho da tua casa – mas sem adjectivações.” “É simples!, é só isso que é escrever?”, respondeu-me imediatamente.
Continuo à espera.
MARAVILHAMENTO
Gosta-se de livros pelos seus “conteúdos”: pois. E o resto, não é livro? Estas e outras dúvidas mais ou menos idiotas desvanecem-se quando temos entre mãos livros editados pela abysmo, do João Paulo Cotrim. Já tinha em casa o “Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações“, “O Branco das Sombras Chinesas” do João Paulo Cotrim/António Cabrita, com ilustrações de João Fazenda; hoje chegaram pelo correio a esta terra “prantada” no meio do Atlântico “As Coisas” da Inês Fonseca Santos, com ilustrações de João Fazenda, e “Uma História de Amor no Casal da Eira Branca” de Tomás Vasques com ilustrações de Susa Monteiro – e pronto, vão as tais dúvidas a ganir alto e forte para longe. Com estes livros nas mãos, o Marx e o Engels não teriam sido tão violentos contra a propriedade privada, acho até que teriam lutado arduamente pela posse destes livros singulares. Eu, pelo menos, compreendo agora melhor o que é desejar uma coisa e depois sentir a sua posse. Enfim, não quero pregar doutrina, não empresto estes livros a ninguém e acabou-se. Mas apetece-me mostrá-los aos amigos, a distância segura das suas salivas e das suas mãos subitamente velozes. A fazer-lhes pirraça, como dizíamos quando éramos garotos – a única fase da nossa vida em que não temos problemas com a posse, “é meu/minha” e acabou-se! Ficam aqui as capas destes dois últimos livros, em versão envergonhada de scanner. Mas, mais logo, na cama, é que vai ser das boas: “olha pra eu” sossegadamente a lê-los, ou talvez devoradamente a.