Archive for ‘Rui Azevedo Ribeiro’

10/04/2014

Coração quase branco

por cam

É no que dá um iogurte estragado: náusea repentina, vómitos disfarçados de arrotos, cólicas intestinais. Sanita comigo. E logo logo para a cama – a prevenir achaques maiores com a ajuda de uma infusão de macela e cidreira.
Aproveito a frouxidão inesperada do corpo e o repouso de meio da tarde para ler. Entre compras e ofertas recentes, decido-me pelo “Coração Quase Branco”, do António Cabrita – livro da 50 Kg (como habitualmente composta em caracteres móveis e com impressão a condizer), que o seu editor, o poeta Rui Azevedo Ribeiro, me tinha dado em Coimbra, no Mal Dito, meia dúzia de dias antes.
Cabrita Coração quase branco

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24/02/2012

RENDIMENTO MÍNIMO

por cam

O poema é o lugar da imperfeição, da rudeza, do não-dito a tentar irromper. A poesia é uma teima infindável, sabedoria da impossibilidade. Mas o poema é isso, a poesia é isto, de outro modo, se se alcança o inalcançável, a coisa deixa de ser poema, deixa a poesia de existir – acontecerá outra coisa, com outro nome. E não sei se valerá a pena aí chegar. Prefiro a demanda. De modo que devemos deixar para os encartados a poesia imaculada e as poéticas tal-qual. Elas petiscam, porque não arriscam. Engalfinhadas na luta pelo poder – o que dá prebendas mediáticas e outras em euros crocantes, mas também os pequenos poderes domésticos, das pequenas tribos domesticadas em tascas e bares esconsos – fazem dos poemas e da poesia um negócio vil e venal.

Nunca sabemos onde estamos – eis também o que deve ser dito. Já vimos muitos dos arremessadores de pedras da calçada acabarem, verdes-rubros, nos parlamentos dos poderosos; outros, em certos momentos da vida publicam antologias dos melhores poemas, seus, se a tão longe se atreveu o despudor, dos outros, quando é longa a lista de dívidas sujas a pagar. É quando a poesia faz trasfega e se traveste em tráfico de influências.

As Edições 50Kg, Porto, do Rui Azevedo Ribeiro, faz livros em caracteres móveis, em pequenas tiragens (150 a 300 exemplares, creio que não mais). Está lá tudo o que um livro de poesia é: o tempo lento da incerteza. A tipografia de caracteres móveis, para quem não saiba, é um longo e paciente trabalho oficinal de juntar com uma pinça letra a letra, sinal a sinal, para ter uma palavra, uma linha e depois outra e outra e outra até que um pequeno livro começa a surgir; e a prensagem de cada página, imperfeita, onde se adivinha uma sabedoria dos materiais quando fazem sobressair uma palavra ou uma sequência, ou, pelo contrário, a tinta a menos quase elide uma outra. Cada pequeno livro guarda o cheiro, a rugosidade, é lugar de imperfeição, de rudeza.

Li na Terça-Feira de Carnaval três livros da 50Kg recebidos no dia anterior: “A metafísica das t-shirts brancas”, de Miguel Martins, “Rendimento mínimo”, de A. Dasilva O. e Rui Azevedo Ribeiro, e “Palinopsia”, de Pedro S. Martins.

O termo “palinopsia”, do grego “palin” (de novo) e “opsis” (ver, visão), significa literalmente “ver de novo”; “palinopsia” é, pois, um distúrbio visual que faz com que as imagens persistam mesmo depois do seu estímulo ter desaparecido. Não sei como o Pedro S. Martins “inventa” os seus poemas, por mim, voltei a ter ontem, mais uma vez, a experiência de, com os olhos fechados, reter-me numa imagem mental, fixamente, até chegar às palavras (incoincidentes, já se sabe). Acho que são “pós-imagens” estas figuras de S. Martins: “Visitam-me as netas. / / Trazem / os olhos em vida / a ferver (…)”, ou: “Sobressaltado / fuma cachimbo como / se tivesse / uma seara / de fogo à frente / dos olhos”.

A. Dasilva O. abre a sua parte do “Rendimento mínimo” assim: “Um poema é já a morte / abençoada sem qualquer / valor ou angústia (…)” Por isso, sem “estado, teoria / ou discurso” espera pela “chegada / do carteiro / com o vale da morte” onde está escrito tudo o que não quis escrever. A cada poeta a sua verdade, mas eu, como leitor interessado no ofício, assinaria por baixo esta “morte” sem “valor” ou “angústia” como um modo de fazer do poema. O “rendimento mínimo” do Rui Ribeiro obriga-o a expor-se “ao canto em vergonha / À espera da quantia exacta”. Rendido “Entre ser ligeiro no desapego / E a imobilidade de estar atravessado / Por uma armação em poema”. Para além das valorações políticas e do jogo referencial, adiro ao fazer do poema onde o poeta procura assegurar o seu “rendimento mínimo” de palavras.

O poeta foi devidamente industriado “nas artes e ciências de estar vivo, / excepto a respiração, que é oferecida: // comer, roubar, fugir, / ser intramuros e existir na gleba / e desistir / silenciosamente.”; queimaram-lhe “reiteradamente os nervos, o bem-estar, o amor com ferros / em brasa trazidos dos fogos descontrolados dos [n]vossos egos.”: Miguel Martins não traz “paz; só, talvez, menos guerra / connosco, dia a dia, torturados.”, é poeta de “espada (…) de dois gumes” Cabe-nos a escolha, diz.

Depois, veio a “Quarta-Feira de Cinzas”.