Posts tagged ‘Edgar Allan Poe’

17/02/2012

POE-ÉTICA (02)

por cam

[continuado daqui]

Frente à morte e pela morte. Em cada um de nós (potenciais assassinos), ficam impedidas as duas possibilidades, a de ser vítima e a de ser verdugo, por obra da morte: um (a vítima), deixa de ser; o outro, será já igual a si mesmo, ficará identificado e coisificado pela morte que escolheu, convertido num estereótipo penal, o assassino. Esta primeira vertente simbólica que deriva da análise do romance policial, diz-nos que a vontade de um indivíduo mantém sempre aberta a possibilidade do injustificável – entre todos nós, há alguém que decide ser o criminoso, e esta decisão que o condena confirma-o, também, como sujeito livre. Já se disse que todos os crimes se cometem em nome da liberdade: em termos de uma determinada consciência ética, assim é: não há liberdade sem crime. Porém, o mesmo romance detectivesco clássico reproduz no seu próprio mecanismo a garantia de que a responsabilidade moral não deve chegar a ser imputabilidade arbitrária. No romance procura-se o culpado, não um culpado. O nervo próprio do género é a negação do ordálio, o capricho ou bode expiatório. A coacção social pretende recompor a ordem social quebrada; mas o detective não alinha na procura do rasto da vontade do mal. O que faz grande um detective é a sua intuição de uma autêntica objectividade. Os mais originais e aparentemente caprichosos formaram o seu génio na luta contra a generalização apressada e contra os juízos apriorísticos. O velho detective atreve-se à descoberta do singular, do irrepetível. Contra os ditames do senso comum, da simples doxa, o grande detective reclama-se da lógica pura, a instância menos sujeita à superstição popularucha e ao referendo. Ou seja, defende Savater, o género detectivesco clássico consiste na simbolização dramática da liberdade moral do homem e da imparcial objectividade da justiça.

Ao romance detectivesco clássico chamou-se romance de mistério e Savater defende que o mistério é a sua razão de ser, o seu traço fundamental. Gabriel Marcel, lembra Savater, distingue entre «problema» e «mistério»: os «problemas», são aquilo que a nossa intervenção activa pode resolver, como a fome ou o analfabetismo; os «mistérios», apenas podem ser apresentados e vividos, mas não resolvidos, como o sagrado, a morte ou o amor. Poder-se-ia então aceitar que o romance detectivesco seria melhor qualificado como «romance-problema»; mas não, contraria Savater: para além do problema tem de haver um mistério. Poder ser, como se disse, o injustificável e a liberdade. Porque é mistério o que pressentimos dentro de cada homem, a capacidade enigmática do sublime; ou, então, um dos diferentes “eus” que cada um esconde em si e que se decide romper o velho pacto que nos une contra a fera. O detective, então, avança por entre a névoa em direcção a um rosto desconhecido do qual apenas sabemos que se assemelha a nós. E depois o calafrio delicioso ao sentirmos a sua mão firme que nos arrasta, enquanto uma voz nos diz ao ouvido: «Vamos, Watson, a aventura está a começar!»

10/02/2012

POE-ÉTICA (01)

por cam

Aconchego na minha mesa de trabalho Pessoa, Borges e, agora, Savater. Tudo, todos, por causa própria, mas que ambiciona ser pública: um romance, à falta de melhor termo, que joga (brinca) com a sucessão dos acontecimentos, a ordem das causas e das consequências, a natureza do real e da ficção, o lugar da escrita e da leitura, a revolta do tempo, espelhos, um ou mais assassinos num edifício de três andares…

Este romance ainda sem nome está a ser escrito desde 2007 e só a meio do ano passado deixei nele entrar o Pessoa, o das novelas policiárias (Quaresma, Decifrador), e o Borges (sobretudo quando ele reflecte sobre a literatura policial), em parte pela mão do seu biógrafo Volodia Teitelboim – e ainda virá o Pessoa dos Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal (edição de Richard Zenith), o dos Escritos sobre Génio e Loucura (edição de Jerónimo Pizarro), e o sempre presente Bernardo Soares e… chega, se não, não há romance; e o filósofo espanhol Fernando Savater. Este veio de uma releitura de Los Cuadernos del Norte (Revista Cultural de la Caja de Ahorros de Asturias), e, no número de 1983, dedicado à “Novela Criminal”, entre as páginas 8 e 11 lá está o artigo do filósofo: “Novela detectivesca y conciencia moral (ensayo de poe-etica)”. Metade do artigo é preenchido com uma discussão sobre os chamados romance detectivesco e romance negro – e Savater inclina-se para o primeiro. Lembra também, que o primeiro tem como arquétipo clássico o “Rei Édipo” e o segundo “Orestes” ou mesmo “Filoctetes”. Mas ele, no fundo, crê – e eu alinho – que a questão não é de géneros mas de individualidades.

A segunda parte do breve ensaio coloca as questões que mais me interessam neste contexto da minha escrita. Diz ele, que o romance detectivesco parte de uma perplexidade para chegar a uma culpabilidade: da esfinge ao descobrimento do crime, tal como em Édipo. Desde sempre – e para sempre – os indivíduos têm de escolher entre o mal e o bem, entre a virtude e o crime, indiferentes às épocas e aos regimes políticos, como se se tratasse do primeiro dia da história. Para conservar a independência e liberdade do indivíduo, é preciso reconhecer-lhe a capacidade de cometer o indesculpável, o injustificável. O detective começa a sua investigação pela mais terrível e transcendente verdade: qualquer homem tem bons motivos para matar um seu semelhante. A morte do próximo, essa expedita solução a que renunciámos socialmente para formar a comunidade, não deixa nunca de lançar-nos o seu apelo. O romance é tanto melhor, pois, quantas mais personagens estão em condições e com disposição de matar. Há sempre uma vontade que se decide e dá o grande salto. A investigação procura juntar a decisão e o gesto que a cumpre num único agente livre, identificado perante a morte.

[continua]